segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Apologia do piquenique

A Wikipédia diz que um piquenique é «uma refeição ao ar livre», «al fresco», «en plein air». Continua, lembrando que se faz preferencialmente numa bela paisagem como um parque, junto de um lago ou com uma vista interessante e também pode ser num evento público, habitualmente no verão. Parece que inicialmente, os piqueniques resultavam do contributo dos comensais, a actual “multa”. Actualmente, podem ser familiares ou de um grupo de amigos, mas também uma refeição a dois, com comida de barbecue ou não. Terão começado a vulgarizar-se no início do século XIX, com a burguesia, embora haja registso narrativos e pictóricos de refeições ao ar livre, colectivas, durante as caçadas. Creio que o povo só teria tempo para tão grato prazer nas romarias. Não se devem contar aqui as refeições durante longas travessias de caravanas pelos desertos ou montanhas, com fins comerciais ou militares, ou as merendas dos trabalhadores nas cegadas, nas vindimas e outras colheitas, pois falta-lhes o lazer como objectivo principal.

Para além destes, que outros elementos deve ter uma refeição para ser considerado um piquenique? Uma manta e um cesto ou sucedâneos improvisados destes, cadeiras apropriadas e/ou almofadas. As árvores também são fundamentais, pela fundamental sombra, se for Verão. Parece-me que o convívio, alargado ou íntimo, também é essencial. Mas isso pode ter-se em casa. Se nos damos ao trabalho de preparar o aparato, de combinar o ajuntamento — ainda que reduzido a dois — deve ser porque é uma experiência especial, talvez por nos permitir voltar ao princípio dos tempos, sendo nómadas e sem-abrigo por umas horas. Isto agrada-nos porque temos muita confiança nos confortos do sedentarismo.

Já o (di)vino Omar Kayam, que aqui transcrevo em versão inglesa, registava esta sensação de prazer primordial, até porque reduzida ao essencial: poesia, pão e vinho. What else?

A book of verse beneath the bough,
A loaf of bread, a jug of wine, and thou
Beside me singing in the Wilderness —
Ah, wilderness were paradise now!

Haverá muitas e mais profundas razões para fazer um piquenique. Para mim, é a saída da rotina das quatro paredes da sala de jantar, ou da cozinha, que me anima. O que é certo é que adoro piqueniques e lamento fazer tão poucos, por falta de estímulo das eventuais companhias.

Já os fiz com amigos, em família, com companheiros de viagem, junto de um riacho, à beira-rio (o Douro tem tantas possibilidades escondidas), na neve (sim!), na varanda de um hotel com excelente vista, debaixo de uma ponte, numa gruta para abrigar do vento, nocturnos, sobre uma enorme fraga (a mesa) no meio de um vale, em parques de lazer, sobre uma muralha, no Outono, na Primavera, ao almoço, como lanche, como jantar e como ceia, para ver nascer a Lua cheia. Mas nunca me tinha ocorrido o piquenique ao pequeno-almoço. Como é que nunca me tinha lembrado disto? É das experiências mais aprazíveis — talvez também por nos sentirmos únicos a fazê-la: chegar à praia antes do sol nascer, dar umas boas braçadas naquela água que parece uma língua sedosa a afagar a pele toda e depois sentar a uns escassos metros da linha de espuma e tomar o pequeno-almoço, com o pão fresco comprado na padaria que foi preciso esperar que abrisse, com a brisa carregada de salpicos e a quentura do sol nascente a amornar a pele. Luxo dos sentidos!

Já vi deixar ossos de frango e sacos plásticos no chão, um casal idoso com um ar ditoso, piquenicar numa saída de emergência de uma via rápida. Também já vi as margens do Sena fervilhantes de piqueniques: numerosas famílias árabes, contidas famílias francesas, pares românticos, tudo lado a lado, quase sem espaço para a manta, numa noite de Agosto de 2005, invulgarmente quente. Que atmosfera jubilosa. Que vontade de dar graças à vida. Que oportunidade para nos lembrarmos dessa maravilha de que às vezes nos esquecemos, egoístas nados e criados nela, e que é a Paz. Ocorreu-me isso, ao olhar para uma senhora com mais de 80 anos. Sessenta e cinco anos antes, aquela noite de alegria piqueniquista seria, não só impossível, como impensável.

Seja déjeuneur sur l’herbe, sur la table ou sur le sable, cabe aqui evocar o nosso Cesário Verde e o seu piquenique de burguesas, onde pontuavam boa comida e «o supremo encanto da merenda / o ramalhete rubro de papoulas».

Com o Outono já entrado no calendário e nas ruas, não há o garrido das papoulas, mas as folhas caducas começam a pintar. É uma excelente oportunidade para comer os saborosos frutos desta época sob uma copa ou sobre um tapete de folhas coloridas de plátanos, carvalhos americanos, liquidâmbares, faias… Venham dias de sol e piqueniquemos, amigos, piqueniquemos.

sábado, 7 de setembro de 2013

Ode Radical

Com um «muito-obrigada» ao Sr. Álvaro de Campos e para provar à
minha amiga Ângela que Fernando Pessoa também fez
canyoning


ODE RADICAL

À dolorosa luz do grande sol de verão
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida de muitos amigos.

Ó pedras, ó ramagens, ó inferno!
Forte espasmo repetido do coração em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos ressequidos fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes vícios modernos,
De vos sentir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó actividades radicais na água!

Em febre e olhando a montanha como a um desafio total —
Grande tópico natural de terra e fogo e força —
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro —
E há Plutão e Apolo dentro das serras e das fragas magnéticas
Só porque houve outrora e foram divinos Apolo e Plutão
E pedaços de alpinistas do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro de Ésquilo do século cem,
Andam por estes carreiros de transpiração e por estes calhaus e por estes arbustos secos,
Murmurando, raivando, ciciando, suando, escorregando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me toda como um rio se exprime!
Ser completa como uma montanha!
Poder ir na vida triunfante como uma torrente de última hora!

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me toda, abrir-me completamente, tornar-me passenta
A todos os perfumes de pedras e calores e águas
Desta paisagem estupenda, bruta, natural e incomensurável!
Fraternidade com todos os caudais!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do saltar assombroso e temerário
Das cascatas estrénuas,
Da faina elevadora-de-adrenalina dos que apoiam,
Do giro lúbrico e lento das cordas,
Do tumulto indisciplinado das quedas de água
E do silêncio sussurrante e monótono dos charcos de transição!

Horas no Poio, loucas, entaladas,
Entre escarpas e pegos!
Grandes seixos parados no leito,
No leito — oásis de repouso merecido
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do cansaço.
E as fragas, e as fragas-estendidas e as lagoas de frescura!
Nova Circe com alma dos rios!
Quilhas de fragas sorrindo encostadas às margens,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos taludes!
Actividade emocional, transpirante, Pena Aventura!
Deslizes e febris agitações no tempo, no ar, na água,
Nos desfiladeiros das Fisgas e do Cares,
E nas quedas do Iguaçu e de Niagara que entram
Pela minh'alma dentro!

Hé-lá as lajes, hé-lá os declives, hé-lá la folie!
Tudo o que passa, tudo o que pára ao sol e à sombra!
Peixes, pássaros, aranhas exageradamente bem-instaladas,
Membros evidentes da polícia local de insectos voadores;
Salientes figuras alerta; alfaiates de rio tontos
E fictícios até nas patas exageradamente longas que movem como robots
De ribeira em ribeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença bem-vinda das libelinhas,
Jóia azul-petróleo com asas (e quem sabe donde vem e para onde vai…),
Das florzinhas, muito discretas geralmente,
Que oferecem cor aos insectos com o fim que se sabe.
A graça feminil e falsa das cobras de água que passam lentas
E toda a fauna e flora simplesmente existente que passeia e se mostra
E afinal tem calma lá dentro!

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das árvores apocalípticas,
Deliciosos escândalos das leis da gravidade e da reprodução,
Transgressões dos cuidados a ter no crescimento,
E de vez em quando o meteoro dum tronco encalhado
Que ilumina de Prodígio e de interrogações os recantos obscuros,
Singulares e solitários numa quieta e sóbria melancolia!

O cheiro fresco a água corrente
Deste regato e da que corre na minha infância longínqua.

O suave chocalhar da água entre os calhaus.
As ervas molhadas, ainda luzidias!
Como eu vos amo a todos, a todas,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Músculos másculos, tapetes de líquenes, granito rosa!
Rosa, cinzento, amarelo, transparência das águas, lodo resvaladio
Ó mostruário de seres anfíbios,
Dos seres anfíbios, cavaleiros-andantes da loucura inútil,
Prolongamentos contemporâneos de homens do leme, sebastiões
E outros tantos tontos!

Ó barras de cereais! Ó sanduíches! Ó contenção no apetite!
Ó mantimentos líquidos que toda a gente quer beber!
Olá grandes sedes sem fim!
Olá garrafas de água que vêm e circulam e desaparecem!
Olá tudo com que hoje a gente se distrai, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, enxurradas, rappels, raftings, tobogans, canyonings, novos divertimentos!
Divertimentos importados, gloriosamente perigosos!
Canoas, botes, ganchos, capacetes, cordas, roldanas!
Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera,
Amo-vos carnivoramente,
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, extremas, excessivas, inúteis,
Ó minhas contemporâneas,
Nova Revelação desportiva e dinâmica de Deus!

Ó rios, ó rápidos, ó salva-vidas, ó Grand Canyon
Ó pontos altos, ó gargantas fundas, ó delicioso frisson
Na minha mente turbulenta e incandescida —
Possuo-vos como a um homem belo,
Completamente vos possuo como a um homem belo que não se ama.
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssimo.

Eh-lá-hô fachadas das grandes descidas!
Eh-lá-hô poços sem fundo à vista!
Eh-lá-hô composições minerais!
Quartzo, feldspato, mica, mármore, xisto, gemas.
Gemas não falsificadas!

(Uma jóia é tão natural como uma erva
E um arnês tão belo como uma borboleta).

Eh-lá o interesse por tudo na vida,
Porque tudo é a vida, desde os rasgões nas mãos
Até à brisa, ponte misteriosa entre pontos desconhecidos.
E o rio antigo e solene, lavrando as costas,
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Plutão era realmente Plutão
Na sua presença irreal e na sua alma sem carne por fora,
E falava aos humanos, que o haviam de esquecer.

Eu podia morrer triturada por uma pedra
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro dos remoinhos!
Metam-me debaixo dos penedos!
Lancem-me para dentro da voragem!
Masoquismo através das águas!
Sadismo de não sei quê moderno e muito antigo e eu e barulho!

Up-lá hô remador que ganhaste a partida,
Morder entre dentes o teu remo de dois fins…

(Ser tão forte que não pudesse permanecer em casa!
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, quase-grutas dos cachões secos!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas arestas,

E ser levantada do chão cheia de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!

Ó fatos-de-banho, fatos de neoprene, capacetes,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!

Hilla! hilla! hilla-hô!

Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó rios apinhados de sonhadores e de parvos.

Ó poucos, mas impetuosos os dos caminhos da aventura,
Ó rios anónimos e onde eu me posso banhar como quereria!

Ah, e a gente ordinária e parda, que parece sempre a mesma,
Que se deita ao sol o dia inteiro,
Cujos filhos se corrompem nos centros comerciais
E cujas filhas aos oito anos
Vêem filmes proibidos nos canais pagos da televisão.

Mas, ah outra vez a raiva aquática crescente!
Outra vez a obsessão movimentada das águas.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os rios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus do bordo de todos as margens,
Que a estas horas estão frescas e sem ninguém.
Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao choco e monótono ruído contemporâneo,
Ao ruído mudo e estafante da civilização de hoje?

Eia argolas de cordas, eia mochilas, eia céu azul,
Instrumentos de protecção, aparelhos de andar mais depressa,

Eia! eia! eia!
Eia ímpetos, nervos potentes da Acção!
Eia pernas ágeis, simpatia divina do Movimento!

Eia! eia! eia!
Frutos do corpo e da fome de além.
Eia! eia! eia, eia-hô-ô-ô!

Nem sei que existo para fora. Giro, balanço, caio.
Engatam-me em todos as amarras.
Içam-me em todos os precipícios.
Penduram-me em todos os abismos.

Eia! eia-hô eia!
Eia! sou o fogo e a água e o ar e a terra!

Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, montanhas e rios, eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-lá! He-hô Ho-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

Ah, não ter eu energia sempre e em toda a parte!