domingo, 22 de dezembro de 2013

Carta do gato Napoleão às vizinhas

Porque Natal é tempo de reconhecimento do bem que nos fizeram, nesta carta, o gato Napoleão agradece às vizinhas a amabilidade de o deixarem ir para o seu quintal e de lhe terem facilitado o regresso a casa com uma tábua-ponte para a casa dele.

Caríssimas vizinhas,

Aproveito o espírito tolerante que os humanos mostram nesta quadra para vos dar a conhecer as razões da minha obsessão pelo vosso quintal.

Vou começar pelo princípio:

Era eu pequenino e já me intrigava o facto de o meu companheiro mais velho, o Baltazar, gostar tanto de ir para o vosso espaço. Eu bem queria imitá-lo — ou até superá-lo — mas temia não ser capaz. À medida que cresciam as minhas forças — e as minhas garras —, eu observava a aventura baltazarina, calculando distâncias e correspondentes necessidades de energias e jeitos para os saltos, para lá e para cá. O impulso para o lance era muito forte, mas lembrava-me de ouvir os meus donos dizerem muitas vezes: «a curiosidade matou o gato». E este pensamento ia-me impedindo de tentar.

Até que me resolvi. Saltei para a chaminé, e era tão deslumbrante esse novo mundo, que, quando o meu dono, a quem amo acima de todos, me chamou dezenas de vezes, eu olhei-o e fiz de conta que não era nada comigo. Então, desfrutava o prazer imenso de ficar estirado sobre as telhas, dos novos ruídos de gentes e pássaros, das belas vistas do vosso quintal. Começou a crescer em mim uma vontade indómita de cheirar a terra, de pisá-la, de sentir a frescura dos recantos desse jardim das delícias. Olhava-o de vários ângulos, estudava as possibilidades, até que um dia não resisti e segui o Baltazar.

O que vi e senti foi muito melhor do que o que tinha imaginado. O solo era mais fofo, as surpresas sonoras, auditivas e visuais maravilhavam-me em cada recanto. Fiquei tão exaltado, que não quis atender ao chamamento constante e, devo dizer, bem maçador, dos meus donos. Eles imploravam que eu fosse para casa. Mas como podia eu abandonar a deleitosa aventura da descoberta de um novo e tão prometedor mundo? Acabei por ficar lá a noite toda. De manhã, estava cansado, os meus donos tentaram resgatar-me, mas eu estranhei as andanças, pelo que fiz rally com eles pelo meio das couves e camuflei-me nas sombras. As senhoras vizinhas apareceram e queriam ajudá-los, o que, claro, é uma maneira de me ajudarem a mim, pois os meus donos amam-me muito e só querem o meu bem. Dei uma trabalheira enorme a toda a gente, até que, exausto, lá me deixei apanhar.

Cheguei a casa e dormi um dia inteiro de um sono só. Acordei e, de imediato, voltei para o meu lugar de sonho. Aí fiquei mais uma noite em que tudo se repetiu: cansaço, meu e dos meus donos, paciência das senhoras minhas vizinhas e, finalmente, novo resgate. O que eu ouvi em casa! Que era um gato mimado, que não podia ser, que me iam lá deixar para sempre, que não me queriam mais, que não deviam ter-me dado este nome de imperador caprichoso, que eu incomodava as senhoras. Puf, estava a ver que não se calavam.

Fiz como costumo fazer nestes casos em que as coisas se complicam: olhei para o lado, rebolei-me no sofá, elanguescendo os meus olhos cor de esmeralda, e afeiçoei a barriga às mãos deles. É uma estratégia infalível. Não resistem…

Na noite seguinte, como não podia deixar de ser, voltei lá. Tudo se repetiu, mas apenas até à parte em que me chamaram. O resto foi novo: subi por uma tábua de onde saltei para o telhado da chaminé e consegui voltar a casa pelo meu pé, isto é, pelas minhas suavíssimas patinhas. Quando dei conta, já estava a ser afagado pelo meu querido dono que, feliz com o meu regresso, me chamava os mais ternos nomes que, diga-se de passagem, mereço: «o gato mais lindo do mundo, o gato do seu dono, a doçura, a beleza, o douradinho, o seu querido Napoleão, o seu leopardozinho de sofá…»

Desde então tem sido um ir e vir constante e, como ando feliz, nem lhes dou trabalho, faço felizes os meus donos, embora me lembrem sempre: «foste incomodar as senhoras».

No vosso quintal já vivi as melhores horas: é um espaço de liberdade e faz-me lembrar uma pequena floresta, lugar a que pertenço por natureza e do qual sinto muitas vezes o apelo. Mas também já lá tive maus momentos. Foi o caso do desditoso encontro com um meu congénere, um vadio que por lá apareceu e me queria roubar o domínio. Não pude com a insolência de um plebeu a querer destronar-me e enfrentei-o. Lutei com todas as forças, a minha dona mais velha veio em meu socorro ao ouvir os meus gritos, e eu fiquei muito mal tratado. Foram quase três semanas de recuperação, com veterinário, injecções e um intolerável colar elisabetiano. Durante esta reclusão forçada, uma ideia não me saía da cabeça listada: voltar ao quintal. Foi o que fiz logo que os meus donos se condoeram da minha tristeza. O colar atrapalhava, mas aquela milagrosa tábua permitiu-me fazer tudo como dantes.

E é através dela que eu continuo a passar para o paraíso.

Devo-vos essa felicidade sem medida nem preço. Por isso, nesta altura, eu queria pedir-vos para aceitarem esta modesta oferta que simboliza o meu agradecimento pela vossa sensibilidade às causas felinas, a vossa generosidade e paciência. O meu sincero e sentido muito obrigado.

E como passo horas a ouvir a minha dona ler, adquiri algum sentido da poesia, pelo que me atrevo a dedicar-vos os humildes versos que se seguem:

Aqui do meu sofá quente,
Vos mando mel para o pão,
Nozes, força para a mente,
Bombons para a inspiração.

Foi o que saiu. Não posso tentar melhorar por já ser hora de ir para o vosso quintal. E não se deve adiar a Felicidade.

Do fundo do meu pequeno — mas arrebatado — coração, até à ponta dos meus sublimes bigodes, desejo-vos um Natal com tanta felicidade como a que me dão a mim. Se o passarem cá, se forem à janela, ver-me-ão sobre o muro. Nessa hora, eu lançarei um miado só para vós. Como este que aqui fica: MIAAAAUUU!

Do vosso reconhecido amigo,

Napoleão Bonaparte Felinus Amicus