quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Les neiges d’antan

A minha sétima viagem à Polónia ocorreu no fim do inverno de 1997.

Tinha resolvido ir de avião até Berlim oriental e seguir de comboio. Num comboio, russo, aconselharam-me, já que, a caminho de Moscovo, passava em Wrocław, a cidade a que me dirigia.

A Europa estava sob uma rara vaga de frio, o que atrasava imenso os voos.


O comboio para Moscovo

Cheguei a atrasada a Amesterdão, por isso ao chegar a Berlim, a bagagem já se tinha perdido.

Quando, na bilheteira da gare, quis comprar a passagem para Wrocław, disseram-me que o tal comboio russo funcionava de maneira especial e que os bilhetes se tiravam no próprio. Esperei no meio de uma chusma de passageiros russos que achavam que eu era italiana.

Chegou, parou e de cada carruagem vi sair uns homens altos, de sobretudo de filme sobre a Segunda Guerra Mundial. Não falavam inglês e quando pedia o bilhete, recebia um monossilábico «nie» pronunciado gelidamente entre dentes, ricto da máscara soviética que apesar de oficialmente caída, ainda não se descolara dos rostos de quem a usou toda a vida.

O tempo corria contra mim e eu contra a multidão de passageiros que discutia muito com os dos casacões soviéticos. Procurava quem me ajudasse: Do you speak English? Parlez-vous français? ¿Habla usted español? Parla italiano? As cabeças baixavam embicando para a fila desconjunta que se enfiava pelas carruagens dentro. Os menos antipáticos repetiam o refrão dos guardiões: «nie, nie». Esta gente vestia roupas que só vira nos camponeses e operários dos filmes soviéticos e tinha um ar demasiado ansioso, para se preocupar com as necessidades de uma turista. A certa altura, um homem, pelos seus trinta anos, corpulento, de cabelos louros longos e sério como um boiardo dos romances russos, saltou da carruagem com a ligeireza de um tigre e postou-se à minha frente: «I can help you, madam.» Pareceu-me caído do céu este anjo louro, de olhos quase brancos (ruços, diria a minha avó). Disse-lhe que precisava de ir naquele comboio e que queria tirar o bilhete. Falou, na minha companhia cada vez mais inquieta, um a um, com todos os sobretudos que sovieticamente respondiam «nie, nie». No fim da nossa fracassada demanda, ele aconselhou-me: «quando o comboio arrancar, eu ajudo-a a subir e viaja junto de mim, lá havemos de nos arranjar». A força que os seus longos e musculados braços prometia não foi suficiente para me convencer. Perguntei-lhe o nome, já o comboio rolava: «Dimitri». «Bye, bye and thank you, Dimitri!». O comboio começou a andar e eu hierática, passageira única naquele cais subitamente deserto, a olhar para os rostos cansados que passavam, emoldurados pelas janelas do comboio em andamento. Ainda consegui sorrir e dizer adeus. O que tinha visto durante a busca do bilhete fazia-me sentir que tinha sido sensata, mas não conseguia impedir um arrepio na espinha ao pensar no que estes funcionários treinados num regime sem respeito pela vida humana poderiam fazer a uma passageira clandestina, ao longo de centenas de quilómetros cobertos de neve. Para além de muitos sacos suspeitos atirados à pressa para dentro das carruagens, vi passageiros desaparafusarem o forro do tecto da carruagem. Estranhei o cuidado e o receio de serem apanhados naquele óbvio trabalho ilícito e perguntei ao meu salvador louro o que faziam. Ele encolheu os ombros, olhou-me com aqueles olhos de água fria e disse-me: «Smuggling».

Dei os primeiros passos, no cais abandonado, sem plano. Procurei o hotel mais próximo e verifiquei que o comboio seguinte para Wrocław me deixava 10 horas para descansar.

Berlim–Wrocław

O acaso sentou-me ao lado do baterista dos Europe que não viajava de avião. Comunicativo por excelência, era a estrela incógnita do compartimento que se ia enchendo de ciganos. Quando os homens me começavam a incomodar, este músico alegre levantava-se e convidava: «Smoking time», «Drinking time». De modo que a certa altura o compartimento era o mais procurado de toda a carruagem ou até de toda a composição e, para bem do meu sossego, consideravam-me companheira do baterista, também ele já embriagado. Cantou-se, comeu-se, bebeu-se, dançou-se, numa babel linguística delirante. Este ambiente carnavalesco, os ritmos, os rostos, a curiosidade em relação à minha origem exótica («Portugalsko?!») revê-los-ia, mais tarde, nos filmes de Emir Kusturica.

À chegada a Wrocław, estavam 25 graus negativos, algo que quem nunca viveu nem abstractamente concebe. Por mais que me gritassem que não tirasse as luvas para introduzir o cartão na cabine telefónica, era-me difícil imaginar que menos de um minuto pudesse ter dores tão intensas que quando as recordo ainda me afligem.

Por causa deste frio, extraordinário até para a Polónia, morreu muita gente, sobretudo alcoólicos que caíam no chão e ali ficavam congelados. As pombas acordavam com as patas incrustadas no gelo e, para sobreviverem, arrancavam-nas, aos cães punha-se-lhes vaselina nas patas para evitar destino semelhante ao das pobres pombas. Na rua viam-se quase só homens jovens, cujas silhuetas, na neblina, pareciam fantasmas, enchouriçados por poderosas parkas. Altos, com os gestos embotados pelos agasalhos lembravam ursos lentos. Mais tarde reconheci-os nos habitantes da Sibéria do livro de Ryszard Kapuściński, O Império. E eu sempre com a mesma escassa roupa, porque a mochila ainda não tinha chegado. Quem sabe por onde andaria…

Berlim outra vez

De Wrocław até Berlim, o comboio seguiu quase vazio e apenas registo a estranheza dos polícias de fronteira a quem uma portuguesa sozinha levantava suspeitas. Tive de responder a vários sobre a mesma pergunta: «o que tinha ido fazer à Polónia?».

Ao chegar a Berlim oriental, outra vez a surpresa da escassez de iluminação da cidade, então tão característica nas urbes de Leste. Não imaginava que 16 anos depois veria cidades do meu país imersas na mesma semi-obscuridade. O aeroporto fechava à meia-noite, pelo que me dirigi a Alexanderplatz de metro. A fauna era assustadora: um espécime feminino nitidamente embriagado ensaiava dança do varão e aterrava em transe sobre os colos de homens que educadamente a protegiam do espectáculo de decadência; matilhas de jovens tatuados tilintavam correntes que usavam dos pés às orelhas suspensas de ninhos de piercings e entoavam cantos bárbaros. E eu encolhida no meu canto, com a minha mochila recuperada no aeroporto, no último dia antes da partida da Polónia. Saí para a rua e procurei um táxi que me levasse a um hotel onde pudesse passar as oito horas que faltavam para o voo Berlim–Amesterdão. Uma hora depois de bater com o nariz na porta de hotéis que fechavam às 23h, o taxista, moído de piedade e de impotência, desligou o taxímetro e não sabia onde me deixar numa noite de sábado em que havia «too many crazy people». Lembrei-me de um Burger King que sabia permanecer aberto de noite e pedi para me deixar lá. Preparada para ali passar a noite, pedi café e instalei-me o mais comodamente possível a ler uma tradução francesa de um livro Anna Akhmatova.

A certa altura, comecei a detectar o padrão sonoro do movimento dos clientes: chegavam, eram servidos e partiam. Passadas horas e em luta franca com o sono, começaram a visitar-me as tentações de quando trabalhava em turnos nocturnos: uma valorização tão grande da possibilidade de dormir que um exíguo recanto no chão começava a ganhar confortos insuspeitos de cama. E já a sala estava em silêncio há bastante tempo. De súbito, uma silhueta masculina jovem acerca-se de mim, aponta-me uma arma — sim, uma arma de fogo, pistola, revólver, sei lá! — e fala-me em alemão. Não tento perceber o que diz. Não ouço. Só vejo. Todo o meu ser sentiente e pensante está concentrado naquele cano de saída de um projéctil. Todo o meu ser grita para dentro a mesma frase: «Ele vai matar-me!» E eu incrivelmente sossegada. Resignada ao meu destino, ainda chego a pensar: «É um daqueles doidos que entra nos restaurantes e mata tudo, não posso fazer nada». De repente, um ruído no balcão vazio. O meu ameaçador esconde a arma sob um trapo. Os gestos são lentos: ele olha para a fonte do ruído, eu também. E olho uma outra vez aquele terrível orifício do cano da arma. O ruído no balcão aumenta de volume e prolonga-se. Ele dirige-se ao balcão. Penso: «vai matar primeiro o empregado, tenho de fugir». A única porta livre fora da sua possibilidade de barragem fica no lugar oposto à entrada. Levanto-me e decido-me. Volto para trás para levar pelo menos a carteira de mão. A mochila que se lixe. Ao retomar o passo, dou conta de que tenho as pernas encortiçadas pelo medo. Luto, impondo a mim mesma: «tens de sair daqui». Desço por umas escadas que dão para a casa de banho. Entro e ocorre-me: «aqui é que ele me mata sem ninguém dar conta». Saio, subo as escadas e entro por outra porta que encontrei. Vou dar à cozinha e a minha aparição assusta o empregado. Conto-lhe tudo, ele chama a polícia que chega com uma prontidão germânica. Entro no carro policial, damos uma volta, mas nem rasto do indivíduo cuja cara — creio — não cheguei a olhar. Findas as démarches da queixa, reentro no Burger King que nesse momento me pareceu um saloon de western. Só penso em sair dali, mas ir para onde se na rua estão 17º negativos? Revejo os acontecimentos da última hora e já não acredito que aconteceram. Preciso de integrar esta irrealidade. Mas tenho a certeza do cano apontado ao meio da minha testa. Foi mesmo verdade! E por que é que ainda agora saí do carro da polícia? Aconteceu-me mesmo!

Saio para a rua, apanho o primeiro autocarro para o aeroporto. O ar condicionado, a segurança, fazem-me sentir chegada ao paraíso. Falo com dois americanos que andam a dar a volta ao mundo de bicicleta. Aprecio-lhes as magníficas máquinas (de pedalar e de fotografar), convidam-me a fazer-lhes companhia até à Nicarágua. Eu penso na Nicarágua que me espera no dia seguinte, às 9h, numa escola esconsa da Régua.


Paris–Porto

Ao chegar a Amesterdão, o avião já tinha partido para o Porto. Só me restava a rota por Paris. O Charles de Gaulle, com os voos atrasados horas, parece um aeroporto da Índia. As pessoas deitam-se pelo chão, sobre as malas que arrastam desoladamente. Torno-me intérprete de quem não fala francês, mas a Air France é muito lacónica em informações. Só sabemos que temos de esperar, não sabemos quanto tempo. Compro Testaments Trahis de Milan Kudera e a espera deixa de me preocupar. Vamos quando formos.

A meu lado, noto que sou alvo da atenção de um jovem. Olho-o, aproxima-se e diz-me que conhece o autor. Sorrio pela estratégia bastante primária. Mas é simpático e eu preciso de contar o que vivi para acreditar. É o que faço, mas acho que ele começa a pensar que lhe saiu uma maluca com vocação fantasista.

A certa altura ele diz-me que vem para o Porto e cotejamos cartões de embarque: o mesmo voo, lugares separados. Ele em classe executiva, eu em económica. Posto que eu não era uma passageira prevista para aquele voo, informam-me mais tarde que o meu bilhete foi alterado… Para um lugar na executiva, claro, mesmo ao lado do Georges. Com toda a Europa debaixo de temperaturas negativas, aposto com o comissário de bordo em como o Porto é a única cidade com o termómetro a marcar acima do zero. Ele e o Georges sorriem complacentemente; eu, com ar de vitória. O meu companheiro de viagem esclarece-me que não vai exactamente para o Porto, mas para uma cidade mais ou menos a 100 km e pergunta-me se sei como pode lá chegar àquela hora. Fico a saber que temos o mesmo destino final e tranquilizo-o dizendo-lhe que tratarei de tudo.

Duas horas depois de aterrarmos estamos em frente ao hotel onde ele passará a noite para no dia seguinte reunir com os concessionários da Renault da zona nordeste de Portugal. Pede-me o endereço do meu local de trabalho.

Regresso à vida-vidinha

Eram 16h do dia seguinte, estava eu a dar uma aula de Francês, quando uma auxiliar de acção educativa me interrompe para me dizer que está ali um senhor francês que me quer ver, que insiste muito, nem que seja só por dois minutos. Digo-lhe, convicta, que só pode ser engano, que não conheço nenhum francês. Olho por detrás dela e vejo, dirigir-se a mim, com um ramo de rosas e um cartão, o Georges que me diz apenas isto: «Il faudrait que je fasse cela. Merci. Si un jour tu vas à Paris, cherche-moi à cette adresse.» Fiquei a olhar para a sua silhueta até dobrar a esquina, voltei-me para a turma, que assistiu a tudo em silêncio, e, com as flores no braço, disse-lhes: «je vais vous raconter cette histoire». Não sei se entenderam tudo, mas foi das poucas vezes em que senti as minhas palavras entrarem-lhes pelos olhos fixos adentro.

Nunca mais vi o Georges, a escola fechou, nunca mais fui à Polónia. Contei esta história poucas vezes e durante muito tempo não consegui olhar de frente o cano de uma arma de fogo no ecrã. Dezasseis anos passados, já não vejo filmes com cenas destas e se não entro no Burger King é porque nunca gostei do que lá se come ou bebe. Só agora escrevi esta viagem porque só agora regressou a vontade de viajar sozinha.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Voando sobre um ninho de cucos

Para ti, para quem a burocracia é inútil, porque cumpres mandamentos da tua consciência, proponho-te esta ordem de trabalhos.

PONTO UM: abrir as asas e arejar bem as penas fofas, fazer um voo rasante às cabeças dos presentes (resistindo à tentação de lhes bombardear a cornadura), anunciar-lhes chuva e pardas recordações, depositar-lhes ovos no ninho dos falsos escrúpulos, jungi-los às suas silhas rangentes e aos seus cargos pleonásticos de plástico, deixá-los a afiar os dentes rapaces e a polir o pêlo ralo dos chefes nos desvãos infectos da intriga, servir-lhes uma ceia em que todos (se) possam lambuzar (e sempre com a parelha bem arreada de vantagens). Eis o menu:
Entradas:
Má-língua à Narciso
Folhado de mexericos
Pastelão de lisonja à louvaminheiro
Pratos Principais:
Coxa de incompetência em cama de invejas apuradas
Vol-au-vent de ordens de serviço incongruentes
Lombo de maus exemplos com batatinha de frustração
Sobremesa:
Baba de reuniões improfícuas com redução de rigor
Crepe de complicações inúteis
Fofo de inépcia em coulis de encomiasta

PONTO DOIS: pedir-lhes que dêem uma volta exacta nos seus cascos e deixá-los assim sérios e graves circunloquiando a marcha fúnebre da manada.

PONTO TRÊS: prepararíamos voo alto, certamente mais pesados, porque estas alimárias, ao ver-nos alados, rechear-nos iam os ossos com pedras, e migraríamos rumo a cidades onde houvesse jardins, bibliotecas, catedrais e grandes esplanadas junto de rios onde pudéssemos mergulhar os bicos sedentos de águas claras. E voaríamos, voaríamos, pousando no dorso de qualquer coisa longínqua bordada a ponto de vontade de estar juntos, tecida nos antípodas destas salas de empalhar paciência.

E nada mais havendo a retra(c)tar, dar-se-iam por encerradas definitivamente todas as sessões de faz-de-conta-que-temos-poder-para-decidir sobre coisas que hoje são o último grito do luxo e amanhã serão alegremente despejadas no lixo.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

No ar

(Paris–Hong Kong)

Lá fora a imensidão, uma medida tangível do tudo e do nada. A atravessá-la, o ronco perfurador das lâminas de aço da barca voadora. Para trás, ficam soluços de nuvens rasgadas, o rasto de vapor microespumejante, o rouco rugido das entranhas do monstro estratosférico.

Cá dentro, pelo corredor, de bandeja ou carrinho, «sumo ou água, chá, chá, café? Com licença, duty free, duty free»... Passam os pregões secos dos comissários de bordo. Arvoram uma polidez dura sem disfarçar um certo enfatuamento escuso, supremamente deslocado na hora do avental como uniforme.

Supremamente indiferente ao lá fora e ao cá dentro, resiste o sono de centenas de passageiros às rajadas de um baralho de cartas em jogos de paciências e ao choro arranhado de duas crianças. Nada disto ameaça o sossego do bojo desta baleia alada.

Fetalmente dobrados, pendendo a cabeça em ângulos ortopedicamente incorrectos, embrulhados em exíguos cobertores de bordo, eis os passageiros, senhoras e senhores, feitos figurantes involuntários de uma encenação de Mateusz Kantor ou desertores de uma tela de Magritte.

De quando em vez, arrítmicas irritações dos ares sacodem, em ondas turbulentas, o corpo gigante do pássaro de aço. E sempre inquietam sonos e insónias. Atavismos de naus balouçantes, e nós aqui sem chão! Mar que fosse...

Sem nada que o anuncie, o passageiro a meu lado desperta. Estica os membros numa extensão insuspeita, parecendo que o sono o tornou elástico. Agora é um pássaro estremunhado. Pousa, ajeita as asas, enrola-se e aninha-se no assento que, entretanto, reclinou, e eu olho o filme que passa. Palra a pega que repousa no ombro da personagem adormecida. Abutres de westerns, corvo de Poe, falcão de rainhas de bandas desenhadas, pássaros de Hitchcock, gaivotas na gávea, cuco de Março, pardais ao ninho, mochos piadores, o íbis de Pessoa, rouxinóis para meninas românticas, todos invadem o convés desta arca ornitológica pilotada por um Ícaro em festa.

Ah, Bartolomeu de Gusmão, irmão etéreo, se a tua passarola voasse no tempo e te transportasse ao coração do teu sonho...

E tudo isto no ar, elemento em que rola fácil a esfera da metamorfose.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A última road trip

Era para ser a última road trip. Por isso, queria que fosse típica, a arriscar o kitsch: malas, livros de poesia, cesta de piquenique, manta, equipamento para preparar refeições ligeiras, guarda-roupa temático, máquina fotográfica, mapa assinalado nas Bardenas, algum outro parque natural e cidades interessantes que ficassem no itinerário. Os CD’s tinham sido escolhidos entre as bandas sonoras dos filmes de Tarantino e afins. De resto, muita alegria, espírito do acaso, vontade de rebentar amarras de horários, canseiras, fracassos, rotinas.

Acontecimentos de última hora aconselhavam a não entrar na aventura, mas uma até então incógnita dose de optimismo impôs-se.

Las Bardenas Reales

A primeira cidade, mero posto de reabastecimento, nem sequer consta da rota. No dia seguinte, o hotel de estrada cheio de gente, ruído e aquela decoração que se torna impessoal à força de tanto querer ser personalizada, lixo da América vomitado sobre o coração da Ibéria. Mas os 15 km que o separavam do destino, as semi-desérticas Bardenas Reales, pesaram como argumento decisivo.

Vista pouco antes do pôr-do-sol, esta paisagem lunar surpreende por estar tão vazia de curiosos. Será porque é um cenário em que, ao longo dos 31 km de circuito para automóveis, as formas da desolação geológica se vão tornando personagens interrogadoras do nosso apetite pela desmesura? Não imaginava tanto desinteresse por esta exibição formidável de formações estranhas: gigantescas patas dinossáuricas do solo escorrencial, penhascos de recorte grandcanyonesco, listas vermelhas a marcar as camadas geológicas, a surpresa dos charcos ainda com água, ao lado da pele gretada do solo. O espanto imenso perante o grand large abre brechas por onde passa o hálito da angústia. E sobe o silêncio fora e dentro de nós.

Sem bicicletas nem a Vespa do plano inicial, outra volta de automóvel seria redundante. E assim ficam vistas as sonhadas Bardenas. ¡Hasta la vista!


Tudela

Toureiros em traje de luces no hotel levam à pergunta sobre o quando e o onde de la corrida. Em Tudela, durante as festas, há toiros todos os dias. À noite, jantar na cidade, num ambiente animadíssimo. Arriscaria dizer que os únicos que não andam vestidos de branco e vermelho são forasteiros. A faixa ou outro acessório vermelho sobre o geral branco lembra o sangue, os touros, o vinho tinto, o espírito garrido das gentes. Da Plaza Mayor sai um bruaaaá alto de mais para parecer um idioma, por muito habituados que os nossos ouvidos estejam ao falar martelado dos espanhóis — e por muito que o apreciem, como é o caso. Mas não era nada comparado com o do restaurante: rajadas de sílabas fortes em /a/, sequências de oclusivas muito intensas, formando uma algaraviada disparada para todo o lado, que nos impedia de nos ouvirmos à volta da mesma mesa, ainda que pequena.

Zaragoza

Incursão fugaz apenas para sentir a atmosfera da cidade à volta da magnífica Catedral-basílica de Nossa Senhora do Pilar e do Ebro. O calor, a utilíssima loja dos «chinos», que aqui lembram as dos árabes em França, o café na esplanada e o movimento de um domingo de manhã convidam a voltar sem pressa.


Cuenca

Para a frente é que é caminho e a direcção decide-se no momento. Depois de quilómetros de planície de campos de cereais louros recém-barbeados, o anúncio de um conforto aquático: «Laguna de Gallocanta». De placa em placa passaram mais de 20 km e o galo da laguna sem cantar. Um nativo informa que não se pode ir até à água de carro e, com seca ironia, que a pé só se a certa altura formos a nado… porque está rodeada por um pântano. Então fez-se o piquenique ali mesmo, numa via que dá acesso à laguna, perdão, ao paul, que não havíamos de ver. De repente, esta frase: «Já viste, quase de certeza que nunca mais voltamos a este lugar». Cresce a perturbação que perfura a consciência: «A este e a muitos outros».

Com Cuenca na mira passa-se por alguns desfiladeiros que, apesar de assustadores, não ferem uma dimensão mais humana da paisagem deste trajecto. A entrada é a de uma urbe espanhola moderna e, a certa altura, o movimento já tem ritmo de central e ainda não se vê nada digno de visita até à indicação das «casas colgadas». Lá estão elas inverosimilmente alcantiladas sobre as aflorações rochosas. Para onde haveriam de crescer as edificações entre o apertado abraço dos rios Júcar e o Huécar? E que lugar para a meditação! Não admira a quantidade de mosteiros. As formações líticas enfileiradas lembram colónias de cogumelos ou um bouquet juntinho. A praça central trai a hispanidade com os seus ares de Toscânia, reconhecíveis até por quem nunca esteve para além dos Alpes. Cada recanto é um vício fotográfico feito de paredes velhas mais ou menos restauradas e ruas estreitas. Apanhamos a catedral a tomar banho de sol poente. O jantar é servido por um empregado de mesa a quem agradeço a ternura desta frase, porque dita num tom tão carinhoso e tímido que só parece verdadeiro: «Me alegro mucho que le guste, señora.»



Toledo

Entro na cidade pela terceira vez e uma ideia flameja: ficar no Parador Nacional. Ao seguir as indicações, a ideia ganha razões: uma cidade bonita só se vê de outra margem do rio, e/ou de outra colina, como aprendemos com James Ivory, no filme Room with a view. Mesmo sabendo isto, não podíamos estar preparados para o postal que desfraldou ao abrir as portas da varanda nem que este panorama arrasador pudesse melhorar com os cambiantes de luz ao longo do dia.

A cidade é dominada pelo arrogante Alcázar Real . São várias as construções religiosas e castrenses esmagadoras que, juntamente com o dédalo da judiaria, os ângulos sobre as curvas do Tejo, as pontes oferecem mil e uma possibilidades a olhos inquietos.

Nem um cliente espanhol no Parador. Um sinal da crise? Orientais, russos, franceses — ceux-ci sont partout! — e estes dois portugueses.



Ávila

O nome da cidade na rota tornou obrigatória a paragem: por Santa Teresa e pelas grandes muralhas.

É a última morada antes do regresso. Balanços feitos, concluo que vale a pena ir, sem pré-visitas da Wikipédia, do American Express nem visitas guiadas locais, mas ir, ir. Sabe-se menos, é certo. Se se sente mais por se chegar de olhos nus ansiosos, não tenho certezas.

Os silêncios favorecidos pela grandeza das paisagens, o atar de pontas de conversas e de velhas histórias comuns em registo de monólogo, o vinho bom a favorecer a conversa, a comida recomendável, com excepção dos monotemáticos pequenos-almoços, em que pontua o mau pão, seco, palhuço, desalmado, o rigor indumentário que nunca abandonei, fazem-me acreditar que esta viagem aconteceu mesmo. Penso nas palavras da grande mística de Ávila: «basta uma graça dessas para transformar uma alma por inteiro». As paisagens interiores reveladas pelas fotografias bastam para mudar a vida.

Foi a road trip possível. Será a última?