quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Pequeno tratado sobre árvores

É sabido que muitas vezes nos descobrimos a nós próprios em confronto com o Outro, o diferente. Foi assim que tive a revelação do amor pelas árvores, na capital argentina. De rua em rua, na periferia e no centro, nos bairros pobres e nos ricos, a servir de casas, “meramente” decorativas, isoladas, em magníficos parques, Buenos Aires parece prestar culto às árvores. Árvores de muitas espécies por todo o lado irrompiam a constatação da escassez delas na nossa capital. Eu queria que Lisboa irmanasse a cidade porteña no seu saudável amor pelas árvores. Ainda por cima, Lisboa tem um clima mais propício à variedade que lhe permitiria ter árvores de uma enorme banda latitudinal — mas falta-lhe quem as ame.

A certa altura, vi uma cujas folhas pareciam o pêlo de um gato persa, e perguntei que árvore era. Responderam-me que era um cedro dos Himalaias, levado do Oriente para lá, pelos portugueses… Então redobrou-se o meu lamento: por que é que estes portugueses que atravessavam meio planeta com árvores não as trouxeram para o seu país? E se trouxeram, que pena que não tenham deixado descendência. Alguém que ardesse em sonhos de verde e desatasse a plantar árvores com zelos de megalómano. Mas não! Tem havido loucos da Europa, das estradas, do TGV... e os parques à espera.

Depois desta revelação de dupla face, procurei a génese do meu apreço pelas árvores. Verifiquei que cresceu comigo e por isso não me lembro quando nasceu. Filha de guarda-florestal, vivi doze anos rodeada de árvores e dos seus maravilhosos nomes. Atraía-me o exotismo de palavras como «tuia, pinho lariço, pseudotsuga, cedro, faia», que ainda hoje são música para os meus ouvidos e chaves para o meu coração.

Vejo nelas um dos mais belos poemas da natureza e os aspectos que assumem durante o ano parecem ter sido decididos para não nunca nos cansarmos delas. Impressiona-me a utilidade que têm, mesmo depois de mortas; espanta-me a beleza de todas e de cada uma, juntas e isoladamente. Encanta-me a carga simbólica de que a cultura ocidental e médio-oriental as investiu e que se manifesta em expressões como: «árvore da vida», «árvore da sabedoria». Entristece-me muito a perseguição e os maus-tratos de que são alvo.

É sob as árvores das florestas e dos parques que quase me sinto tocar em algo que busco continuamente e que não sei se tem nome. Sei que me surge no veludo das folhas caídas, no virtuosismo musical das ramagens, no sono das raízes, no salto inverosímil das corças assustadas através dos troncos, no latejar do silêncio solene da montanha, na chuva de luz que cai pelos rendilhados das copas, nos perfumes das resinosas, na surpresa constante dos tons outonais.

A árvore como metáfora seduz-me igualmente, pela dignidade das possibilidades que lhe garantem as raízes, os ramos, as flores, os frutos, as copas frondosas, a mutação das folhas, o facto de morrerem de pé e quando cortadas manterem uma dignidade única em cadáveres.

Não encontro destino mais elevado do que o de tentar ser árvore-metáfora em vida e o de me transformar em árvore depois de morta.