domingo, 23 de março de 2014

Carallhar contra Amor e Mar

A Filipa Leal


Parece que os jovens poetas do meu país
Evitam as palavras Amor e Mar
Mas que se agarram muito à palavra caralho.

Será pelo cansaço do contínuo fracasso
De um país à beira-mar plantado?
E pelos cansaços do Amor
Qualquer amor
Subido proibido platónico tónico
Tranquilo     só a pensar «naquilo»
Flamejante     chamuscante
Substantivo     adjectivo?

Suponho então que a palavra mais obscena
Para os poetas que agora entram em cena
Seja a odiosa amálgama de Amor e Mar
A obsoleta treta da palavra Amar
Imagino como se sentem espancados
Pela poeta do amar, amar perdidamente.

Que sigam suas verdades
Que emprenhem a página e as mentes
A caralhar    e      a encaralhar
Que fujam do Amor e do Mar
Conforme as possibilidades.

Eu vou com as aves
Para as profundezas do Amor
Sobre as belezas do Mar
E também caralho
Quando a poesia e a vida encalham
Contra os escolhos
Das liberdades.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Veneza, capital da divina decadência

Para quem entra em Veneza pelo mar, a linha distante de edifícios entre as águas e o céu vai engrossando até nos assombrar por ser maior do que nós, mais inverosímil do que nas fotografias. É sob o efeito do contacto com o excesso que descemos em S. Marcos, uma das praças mais belas do mundo, onde desemboca o labirinto das ruas. Desta vez é Carnaval e as máscaras com que a cidade habitualmente nos surpreende, e nos suspende, estão em festa.

Máscaras perfeitas. Numa atenção ao pormenor rara em obra feita para o reino do efémero. Talvez a História seja a justificação para tanto fausto, para tanto empenho na busca da singularidade da máscara. É que outrora o Carnaval durava entre dois a seis meses, consoante havia mais ou menos peste. Se actualmente é mais curto o período de ostentação, o espectáculo ganha por encenar o encontro do passado com o presente, personificados pelas máscaras e uma multidão de visitantes, respectivamente. Os actores do passado conhecem muito bem o poder do fascínio da máscara que nos fita silenciosa e, por isso, delongam olhares e gestos. Os actores do presente acabam perturbantemente seduzidos por um jogo discreto, quase indizível entre a festa e a morte.

Este jogo, ou dança em câmara lenta, prolonga-se no desenho funerário das gôndolas. Entrar nelas ou vê-las passar com mascarados provoca um calafrio, suportável talvez porque compensado pelo excesso de beleza. É na tensão deste paradoxo que emerge o esplendor da Sereníssima, uma visão da “divina decadência”. E, porque perturba, não agrada a consumidores viciados na beleza enlatada, muito arranjadinha e esterilizada de muitas cidades alemãs e suíças.

Aqui há recantos sujos, com cheiro de paul, portões corroídos, paredes de palácios invadidas por limos.Há estacas velhas que, vistas à distância, evocam fantasmagóricos cactos aquáticos; vistas ao perto, percebemos-lhes, na parte imersa, uma crosta de algas e pequenos bivalves. Ser cidade plantada sobre a laguna tem estes efeitos, mas também os de mil espelhos que reflectem cambiantes de luz, formas e cores das edificações, aparições de máscaras, os nossos movimentos.

Viver o Carnaval na cidade dos Doges é viajar rápido no tempo e dentro de nós. É isso que trazemos connosco quando Veneza já é mais do que uma linha de edifícios no horizonte da memória.