sábado, 8 de fevereiro de 2014

Os dez livros da minha vida

Anda por aí uma corrente de leituras. Não fui convidada (e por que o havia de ser?), mas apetece-me entrar no exercício masoquista que qualquer escolha implica. Masoquista, porque dói a exclusão da lista de tantos livros excelentes que participaram na construção da minha sensibilidade estética e que carrego no que sou.

Aqui vai, por ordem de importância misturada com uma cronologia não rigorosa.

1 — Doutor Jivago, de Boris Pasternak, que me deu a conhecer os rigores políticos e climatológicos da Rússia. Andei meses com o desfecho infeliz a visitar-me a mente de treze aninhos. Foi assim que perdi metade da inocência.


2 — A outra metade, levou-a Por quem os sinos dobram, de Ernest Hemingway, lido com a mesma idade. Escolhi-o pelo título, na biblioteca da casa apalaçada da aldeia, pois não tinha quem me orientasse as leituras. Foi a vez de a Guerra Civil Espanhola entrar na minha vida. E comecei a aperceber-me da limitação do ser humano face às atribulações História.


3 — O bicho dos livros que me tinha entrado no corpo varreu a estante de Jorge Amado. Nenhum título me tocou de modo individual, mas foi com este autor que descobri a sexualidade como função e expressão naturais do ser humano. Devo-lhe a emancipação neste campo, repisado por tabus, medos — terrores! — da moral rural. Foi também com a leitura de excertos “picantes” aos meus irmãos, rapazes mais novos a quem só interessavam brincadeiras, muitas delas absolutamente parvas, que os introduzi no mundo dos livros que nunca mais abandonaram.


4 — Os Contos Orientais, de Marguertte Yourcenar, talvez tenham sido responsáveis pelo meu actual fraquinho por contos e pelo Oriente e Médio Oriente. Personagens longínquas de nomes difíceis de pronunciar, que ilustram paixões, ódios, defeitos, virtudes universais.
Mais de uma década depois, o conto «A salvação de Wang-Fô» integrava o programa de Português do 7.º ano. Era a minha primeira turma. As aulas seguiam-se ao almoço, em que não faltava um copo de bom vinho. Não nego o contributo da bebida para a atmosfera de pura fantasia que enchia a sala qual mar pintado pelo discípulo de Wang-Fô para o salvar da morte nos aposentos da corte. Creio que a comunicação do texto contagiou aqueles adolescentes, pobres na sua esmagadora maioria, a julgar pelos olhos humedecidos de emoção que via à minha frente. Aquelas personagens longínquas passaram a andar connosco, dentro de nós, e de uma vez que levei um lenço vermelho atado ao pescoço, o aluno mais fraco disse-me: «a stora parece Ling»… Não os salvei da sua condição social, mas empurrei-os para o território do maravilhoso. E eu descobri o prazer de ensinar.
Numa viagem longa de automóvel, uma vez, lembrei-me de contar ao meu marido «O leite de morte», outro dos contos do livro. Passadas duas décadas, esse conto permanece um ritual de viagem. Para espantar o sono da condução prolongada, pede-me: «conta lá o conto do leite» Eu reconto-o e ele volta a ouvir com o prazer de uma criança que não se cansa da mesma história. Foi também o livro que mais ofereci.


5 — As cabeças trocadas, de Thomas Mann, recriação literária de uma história da Índia que ilustra a insolubilidade do conflito entre Idealismo e Materialismo, entre vocação abstracta e vocação prática, mente e corpo. É muito difícil de encontrar, merecia uma reedição, para eu o poder readquirir, já que ofereci todos os exemplares que fui comprando.


6 — A condição humana, de André Malraux, um dos três livros de leitura dolorosa (os outros também estão nesta lista). Tinha de me deitar para o ler e mesmo assim tinha de interromper, para me recompor e continuar. O meu corpo não podia com tanto horror, não tinha espaço, estofo, para o Mal que as guerras soltam da mente humana. Como podíamos, podemos ser feitos daquilo e para aquilo? Como se pode estar numa fila de espera para entrar num forno a arder? Como se pode ser o executor de tal ordem? Ter-se-ão os Nazis inspirado na China ou serão estas crueldades uma face das disciplinadíssimas paradas militares?


7 — Outra vez a crueldade insuportável no Cristo versus Arizona, de Camilo José Cela. Outra vez a revelação daquilo que o ser humano é capaz de fazer a outro. Depois deste livro, a maldade no Ensaio sobre a cegueira, as arbitrariedades dos colonos do Congo, n’O sonho do Celta de Mario Vargas Llosa, a perversidade em Mil novecentos e oitenta e quatro de George Orwell, tornaram-se menos surpreendentes. Uma narrativa sem parágrafos, só com vírgulas e um único ponto, no final, tornaram a leitura de Maria Gabriela Llansol e António Lobo Antunes menos indigestas, para não falar em Saramago, que ao lado deste Cristo parece canja.


8 — Ficções, de Jorge Luis Borges, seguidas de tudo o que escreveu. Um génio inventivo de pasmar, o fantástico a conquistar os píncaros, o timbre clássico de uma escrita solene dilataram o meu território pessoal da Literatura.


9 — Os Lusíadas, não pelos feitos épicos nem pela estrutura narrativa, mas pelo tesouro da nossa língua. Li-os integralmente duas vezes, em fatias, de cada vez que os leccionei. Fiz 800 km para os ouvir do princípio ao fim, numa venturosa jornada do ano passado no Centro Cultural de Belém, em que me surpreenderam três ocorrências: o amor de António Fonseca a este livro, a inexpressiva presença de professores de Português, a ausência de um representante do Estado.
Mas voltando à língua, que espanto o acervo camoniano de palavras, que maravilha os encadeamentos musicais (o melhor deste poeta foi a mestria da musicalidade da língua, captada e conseguida também por Pessoa). Por isso, é poema para ser lido em voz alta e de preferência dado a ouvir. Aqui fica uma sugestão para profissionais e amadores: proponham sessões de leitura da obra-prima nacional, um, dois cantos por semana, por quinzena, mensalmente… Aparecem poucos interessados? Mas esses serão a tal imensa minoria de que falava o nobelizado Juan Ramón Jiménez, indispensável à sobrevivência da excelência na Literatura.


10 — Terra Nostra, do mexicano Carlos Fuentes. Um livro de livros. O livro que me levou à literatura hispano-americana e a James Joyce. O livro dos excessos: a complexidade da estrutura, a polifonia desconcertante, a intertextualidade exigente, a reinvenção da História, os sobressaltos da verborragia, as personagens compósitas, o carnavalesco bakhtiniano, um erotismo zapatista (no dizer acertado de um crítico), a exploração dos limites da Literatura e a exposição do que só ela pode fazer, a perversidade maquiavélica dos ditadores, o poder das imagens apocalípticas, o Mal à solta.
Livro difícil, porque os excessos extenuam, mas impossível de largar por viciados em overdoses de experiências estéticas. Só por esta obra, o autor merecia o Prémio Nobel que injustamente não lhe concederam.
Cheguei a este romance devorador ao ler algures uma referência que rezava mais ou menos assim: «num dos cenários mais recorrentes de Terra Nostra, a construção do palácio-mosteiro El Escorial, é dada voz não só ao rei que o mandou construir como aos operários oprimidos pela obra megalómana…» Não vos lembra nada nem ninguém? Pois…

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