quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Programa «Novas Oportunidades»
(in memoriam)

«Sabe eu tenho este problema na rotunda dos joelhos porque caí na ducha fiz muitos enzames tacs e tudo eram tacs num eram a máquina fazia tac-tac-tac deviam ser fiquei caída no chão a água continuou a correr e imundou a pavimenta toda mas agora graças a Deus estou bem vou empilhar-me muito para fazer todo como deve de ser para um dia ainda vir a cantar numa tumba académica.»

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

O coração das trevas

Falava-se da crueldade sobre os animais. Numa frase mais adiante, a conversa atalhou para a crueldade sobre os humanos. Uma mulher alta e loura barrou a incursão na selva brandindo a catana:

— O problema é que eu não sei se serei ou não capaz disso.

Os olhares suspenderam-se no espelho da lâmina afiada:

— Como é que eu sei? Nunca fui posta à prova!

Era juíza e neta de uma alemã cujo primeiro marido morrera na guerra.

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Na Ponta da Piedade

Memórias com mais de três décadas faziam-me crer que tinha visto a gruta roxa do poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, numa visita às grutas da Ponta da Piedade, perto de Lagos.


Para além da terra pobre e desflorida
Mostra-me o mar a gruta roxa e rouca
Feita de puro interior
E povoada
De cava ressonância e sombra e brilho

(Livro Sexto)


Vim a confirmá-lo no segmento 19:49—20:35 deste documentário, que só vi este ano:

Decidi, então, que teria de rever as grutas em Agosto. Infelizmente, não me informei antes da hora ideal para a visita: de manhã, com o sol a sudeste, portanto, mar raso e maré vazia; não às 17 horas, com maré cheia e mar perturbado pelos ventos do Verão passado.

Voltarei na sua hora áurea, numa embarcação que não leve mais do que quatro pessoas, ou num caiaque, para poder entrar onde grupos de gente ruidosa e de olhos indeslumbráveis não vão.

Não vi a gruta roxa, mas valeu a pena revisitar uma das paisagens costeiras mais extravagantes de Portugal.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Às portas de Sesimbra

O mar calmo e transparente (luzo, na fala dos pescadores), as gentes receptivas, a sensação de comunidade, o traçado acolhedor das ruas estreitas, a frescura do peixe merecem ramalhetes.

Mas merecem ralhetes os edifícios da Praia da Califórnia pela desmesura, aberração em terra de tradição tão comedida na arquitectura, e pela sensação — espero que infundada — de abuso da falésia. Adiante...

A intervenção recente nas portas de prédios arruinados parece uma graça acrescentada a esta simpática vila. Na verdade, só o é por uns minutos. Depois das três primeiras portas pintadas, pus-me à procura de mais... e depressa dei comigo a constatar que os prédios decadentes são muitos, demasiados. Será este efeito próprio da street art, maquilhagem aparatosa que menos esconde do que revela que o rei vai nu?


    
   
   

domingo, 15 de junho de 2014

Uma rosa não é coisa que eu conceba


















Uma rosa não é coisa que eu conceba
Como Arménio Vieira
Para encontrar no fim do caminho da vida
Nem o seu nome me tem presa
Apenas pelo aroma e pelo som
Uma rosa é para pluralizar pelos
Caminhos da vida
Para ter muitas à mão quando me aparecer
Um rei poeta a exigir-me o IVA ou a rima do pão
Para multiplicar perfumes raros
E sonhar com um milagre qualquer
Para ouvir o som    sim   mas repercutido
Rosa rosae rosam rosarum rosis rosis
Sem receio de violar os copyright
Dos herdeiros de Jacques Brell
E como não sou Cristo
Se ficar presa nos espinhos
Acolho-me na corola
Até que a dor ceda
À vontade de me erguer
E continuar a plantar  a regar
Seguindo o meu destino áureo-mediano
Sem nada perguntar a flácidos mestres
Nem a rosas secas
Velhos marcadores de leitura
Nem a rosas  metafóricas
Dos jardins da literatura
Até porque a resposta já a deu um monge
Da Silésia de outrora
La rose est sans porquoi
Elle fleurit parce qu’elle fleurit.

Afinal terás alguma razão poeta camonizado
Pois a morte também vem da mesma maneira
E se não fleurit     ri
De quem sonha encontrar uma rosa
No ocaso
E vive preso a sons e aromas
De nomes
E rirá também de mim
Que não posso adiar as rosas para esse fim.

(Fotografia de Paulo Moura)

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Duas biografias para um poeta




I. Segundo uma leitora
 
A mãe pariu-o com tanta alegria, que nem precisou de ajuda. O menino, assim que viu a luz baça do mundo, escreveu trinta e tantos poemas a fio, com a luz branda e um pouco fria do sorriso dos anjos. Mesmo sem a perturbação dos elementos da natureza, fatalmente presentes em casos símiles, o prodígio do poeta sorridente ao recém-nascer levou a puérpera a considerar-se progenitora duma deidade libertadora das infelicidades humanas: a tristeza, a dor de pensar, a angústia da morte.
Viveu mais inconjunto do que morreu. Deu-lhe o sono como a qualquer criança, fechou os olhos e dormiu.
Deixou obra, discípulos, apóstolos que espalharam a boa-nova pelos quatro cantos do mundo. Os poucos que seguem a lição da natureza, assumindo a ficção da sua simplicidade, são olhados com desconfiança pela maioria, represada pelo desassossego. Mas a sua poesia continua a reverberar uma música suave que abre sorrisos delicados. Talvez tenha sido mais maestro do que Mestre.

II. Segundo o próprio

«Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.»

(16 de Abril de 1889 – Junho de 1915)

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Matemática dos simples

Gastar + Não gastar = Crise
Floresta + Lixo = Natural
James Joyce < José Rodrigues dos Santos

domingo, 23 de março de 2014

Carallhar contra Amor e Mar

A Filipa Leal


Parece que os jovens poetas do meu país
Evitam as palavras Amor e Mar
Mas que se agarram muito à palavra caralho.

Será pelo cansaço do contínuo fracasso
De um país à beira-mar plantado?
E pelos cansaços do Amor
Qualquer amor
Subido proibido platónico tónico
Tranquilo     só a pensar «naquilo»
Flamejante     chamuscante
Substantivo     adjectivo?

Suponho então que a palavra mais obscena
Para os poetas que agora entram em cena
Seja a odiosa amálgama de Amor e Mar
A obsoleta treta da palavra Amar
Imagino como se sentem espancados
Pela poeta do amar, amar perdidamente.

Que sigam suas verdades
Que emprenhem a página e as mentes
A caralhar    e      a encaralhar
Que fujam do Amor e do Mar
Conforme as possibilidades.

Eu vou com as aves
Para as profundezas do Amor
Sobre as belezas do Mar
E também caralho
Quando a poesia e a vida encalham
Contra os escolhos
Das liberdades.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Veneza, capital da divina decadência

Para quem entra em Veneza pelo mar, a linha distante de edifícios entre as águas e o céu vai engrossando até nos assombrar por ser maior do que nós, mais inverosímil do que nas fotografias. É sob o efeito do contacto com o excesso que descemos em S. Marcos, uma das praças mais belas do mundo, onde desemboca o labirinto das ruas. Desta vez é Carnaval e as máscaras com que a cidade habitualmente nos surpreende, e nos suspende, estão em festa.

Máscaras perfeitas. Numa atenção ao pormenor rara em obra feita para o reino do efémero. Talvez a História seja a justificação para tanto fausto, para tanto empenho na busca da singularidade da máscara. É que outrora o Carnaval durava entre dois a seis meses, consoante havia mais ou menos peste. Se actualmente é mais curto o período de ostentação, o espectáculo ganha por encenar o encontro do passado com o presente, personificados pelas máscaras e uma multidão de visitantes, respectivamente. Os actores do passado conhecem muito bem o poder do fascínio da máscara que nos fita silenciosa e, por isso, delongam olhares e gestos. Os actores do presente acabam perturbantemente seduzidos por um jogo discreto, quase indizível entre a festa e a morte.

Este jogo, ou dança em câmara lenta, prolonga-se no desenho funerário das gôndolas. Entrar nelas ou vê-las passar com mascarados provoca um calafrio, suportável talvez porque compensado pelo excesso de beleza. É na tensão deste paradoxo que emerge o esplendor da Sereníssima, uma visão da “divina decadência”. E, porque perturba, não agrada a consumidores viciados na beleza enlatada, muito arranjadinha e esterilizada de muitas cidades alemãs e suíças.

Aqui há recantos sujos, com cheiro de paul, portões corroídos, paredes de palácios invadidas por limos.Há estacas velhas que, vistas à distância, evocam fantasmagóricos cactos aquáticos; vistas ao perto, percebemos-lhes, na parte imersa, uma crosta de algas e pequenos bivalves. Ser cidade plantada sobre a laguna tem estes efeitos, mas também os de mil espelhos que reflectem cambiantes de luz, formas e cores das edificações, aparições de máscaras, os nossos movimentos.

Viver o Carnaval na cidade dos Doges é viajar rápido no tempo e dentro de nós. É isso que trazemos connosco quando Veneza já é mais do que uma linha de edifícios no horizonte da memória.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Os dez livros da minha vida

Anda por aí uma corrente de leituras. Não fui convidada (e por que o havia de ser?), mas apetece-me entrar no exercício masoquista que qualquer escolha implica. Masoquista, porque dói a exclusão da lista de tantos livros excelentes que participaram na construção da minha sensibilidade estética e que carrego no que sou.

Aqui vai, por ordem de importância misturada com uma cronologia não rigorosa.

1 — Doutor Jivago, de Boris Pasternak, que me deu a conhecer os rigores políticos e climatológicos da Rússia. Andei meses com o desfecho infeliz a visitar-me a mente de treze aninhos. Foi assim que perdi metade da inocência.


2 — A outra metade, levou-a Por quem os sinos dobram, de Ernest Hemingway, lido com a mesma idade. Escolhi-o pelo título, na biblioteca da casa apalaçada da aldeia, pois não tinha quem me orientasse as leituras. Foi a vez de a Guerra Civil Espanhola entrar na minha vida. E comecei a aperceber-me da limitação do ser humano face às atribulações História.


3 — O bicho dos livros que me tinha entrado no corpo varreu a estante de Jorge Amado. Nenhum título me tocou de modo individual, mas foi com este autor que descobri a sexualidade como função e expressão naturais do ser humano. Devo-lhe a emancipação neste campo, repisado por tabus, medos — terrores! — da moral rural. Foi também com a leitura de excertos “picantes” aos meus irmãos, rapazes mais novos a quem só interessavam brincadeiras, muitas delas absolutamente parvas, que os introduzi no mundo dos livros que nunca mais abandonaram.


4 — Os Contos Orientais, de Marguertte Yourcenar, talvez tenham sido responsáveis pelo meu actual fraquinho por contos e pelo Oriente e Médio Oriente. Personagens longínquas de nomes difíceis de pronunciar, que ilustram paixões, ódios, defeitos, virtudes universais.
Mais de uma década depois, o conto «A salvação de Wang-Fô» integrava o programa de Português do 7.º ano. Era a minha primeira turma. As aulas seguiam-se ao almoço, em que não faltava um copo de bom vinho. Não nego o contributo da bebida para a atmosfera de pura fantasia que enchia a sala qual mar pintado pelo discípulo de Wang-Fô para o salvar da morte nos aposentos da corte. Creio que a comunicação do texto contagiou aqueles adolescentes, pobres na sua esmagadora maioria, a julgar pelos olhos humedecidos de emoção que via à minha frente. Aquelas personagens longínquas passaram a andar connosco, dentro de nós, e de uma vez que levei um lenço vermelho atado ao pescoço, o aluno mais fraco disse-me: «a stora parece Ling»… Não os salvei da sua condição social, mas empurrei-os para o território do maravilhoso. E eu descobri o prazer de ensinar.
Numa viagem longa de automóvel, uma vez, lembrei-me de contar ao meu marido «O leite de morte», outro dos contos do livro. Passadas duas décadas, esse conto permanece um ritual de viagem. Para espantar o sono da condução prolongada, pede-me: «conta lá o conto do leite» Eu reconto-o e ele volta a ouvir com o prazer de uma criança que não se cansa da mesma história. Foi também o livro que mais ofereci.


5 — As cabeças trocadas, de Thomas Mann, recriação literária de uma história da Índia que ilustra a insolubilidade do conflito entre Idealismo e Materialismo, entre vocação abstracta e vocação prática, mente e corpo. É muito difícil de encontrar, merecia uma reedição, para eu o poder readquirir, já que ofereci todos os exemplares que fui comprando.


6 — A condição humana, de André Malraux, um dos três livros de leitura dolorosa (os outros também estão nesta lista). Tinha de me deitar para o ler e mesmo assim tinha de interromper, para me recompor e continuar. O meu corpo não podia com tanto horror, não tinha espaço, estofo, para o Mal que as guerras soltam da mente humana. Como podíamos, podemos ser feitos daquilo e para aquilo? Como se pode estar numa fila de espera para entrar num forno a arder? Como se pode ser o executor de tal ordem? Ter-se-ão os Nazis inspirado na China ou serão estas crueldades uma face das disciplinadíssimas paradas militares?


7 — Outra vez a crueldade insuportável no Cristo versus Arizona, de Camilo José Cela. Outra vez a revelação daquilo que o ser humano é capaz de fazer a outro. Depois deste livro, a maldade no Ensaio sobre a cegueira, as arbitrariedades dos colonos do Congo, n’O sonho do Celta de Mario Vargas Llosa, a perversidade em Mil novecentos e oitenta e quatro de George Orwell, tornaram-se menos surpreendentes. Uma narrativa sem parágrafos, só com vírgulas e um único ponto, no final, tornaram a leitura de Maria Gabriela Llansol e António Lobo Antunes menos indigestas, para não falar em Saramago, que ao lado deste Cristo parece canja.


8 — Ficções, de Jorge Luis Borges, seguidas de tudo o que escreveu. Um génio inventivo de pasmar, o fantástico a conquistar os píncaros, o timbre clássico de uma escrita solene dilataram o meu território pessoal da Literatura.


9 — Os Lusíadas, não pelos feitos épicos nem pela estrutura narrativa, mas pelo tesouro da nossa língua. Li-os integralmente duas vezes, em fatias, de cada vez que os leccionei. Fiz 800 km para os ouvir do princípio ao fim, numa venturosa jornada do ano passado no Centro Cultural de Belém, em que me surpreenderam três ocorrências: o amor de António Fonseca a este livro, a inexpressiva presença de professores de Português, a ausência de um representante do Estado.
Mas voltando à língua, que espanto o acervo camoniano de palavras, que maravilha os encadeamentos musicais (o melhor deste poeta foi a mestria da musicalidade da língua, captada e conseguida também por Pessoa). Por isso, é poema para ser lido em voz alta e de preferência dado a ouvir. Aqui fica uma sugestão para profissionais e amadores: proponham sessões de leitura da obra-prima nacional, um, dois cantos por semana, por quinzena, mensalmente… Aparecem poucos interessados? Mas esses serão a tal imensa minoria de que falava o nobelizado Juan Ramón Jiménez, indispensável à sobrevivência da excelência na Literatura.


10 — Terra Nostra, do mexicano Carlos Fuentes. Um livro de livros. O livro que me levou à literatura hispano-americana e a James Joyce. O livro dos excessos: a complexidade da estrutura, a polifonia desconcertante, a intertextualidade exigente, a reinvenção da História, os sobressaltos da verborragia, as personagens compósitas, o carnavalesco bakhtiniano, um erotismo zapatista (no dizer acertado de um crítico), a exploração dos limites da Literatura e a exposição do que só ela pode fazer, a perversidade maquiavélica dos ditadores, o poder das imagens apocalípticas, o Mal à solta.
Livro difícil, porque os excessos extenuam, mas impossível de largar por viciados em overdoses de experiências estéticas. Só por esta obra, o autor merecia o Prémio Nobel que injustamente não lhe concederam.
Cheguei a este romance devorador ao ler algures uma referência que rezava mais ou menos assim: «num dos cenários mais recorrentes de Terra Nostra, a construção do palácio-mosteiro El Escorial, é dada voz não só ao rei que o mandou construir como aos operários oprimidos pela obra megalómana…» Não vos lembra nada nem ninguém? Pois…