domingo, 22 de dezembro de 2013

Carta do gato Napoleão às vizinhas

Porque Natal é tempo de reconhecimento do bem que nos fizeram, nesta carta, o gato Napoleão agradece às vizinhas a amabilidade de o deixarem ir para o seu quintal e de lhe terem facilitado o regresso a casa com uma tábua-ponte para a casa dele.

Caríssimas vizinhas,

Aproveito o espírito tolerante que os humanos mostram nesta quadra para vos dar a conhecer as razões da minha obsessão pelo vosso quintal.

Vou começar pelo princípio:

Era eu pequenino e já me intrigava o facto de o meu companheiro mais velho, o Baltazar, gostar tanto de ir para o vosso espaço. Eu bem queria imitá-lo — ou até superá-lo — mas temia não ser capaz. À medida que cresciam as minhas forças — e as minhas garras —, eu observava a aventura baltazarina, calculando distâncias e correspondentes necessidades de energias e jeitos para os saltos, para lá e para cá. O impulso para o lance era muito forte, mas lembrava-me de ouvir os meus donos dizerem muitas vezes: «a curiosidade matou o gato». E este pensamento ia-me impedindo de tentar.

Até que me resolvi. Saltei para a chaminé, e era tão deslumbrante esse novo mundo, que, quando o meu dono, a quem amo acima de todos, me chamou dezenas de vezes, eu olhei-o e fiz de conta que não era nada comigo. Então, desfrutava o prazer imenso de ficar estirado sobre as telhas, dos novos ruídos de gentes e pássaros, das belas vistas do vosso quintal. Começou a crescer em mim uma vontade indómita de cheirar a terra, de pisá-la, de sentir a frescura dos recantos desse jardim das delícias. Olhava-o de vários ângulos, estudava as possibilidades, até que um dia não resisti e segui o Baltazar.

O que vi e senti foi muito melhor do que o que tinha imaginado. O solo era mais fofo, as surpresas sonoras, auditivas e visuais maravilhavam-me em cada recanto. Fiquei tão exaltado, que não quis atender ao chamamento constante e, devo dizer, bem maçador, dos meus donos. Eles imploravam que eu fosse para casa. Mas como podia eu abandonar a deleitosa aventura da descoberta de um novo e tão prometedor mundo? Acabei por ficar lá a noite toda. De manhã, estava cansado, os meus donos tentaram resgatar-me, mas eu estranhei as andanças, pelo que fiz rally com eles pelo meio das couves e camuflei-me nas sombras. As senhoras vizinhas apareceram e queriam ajudá-los, o que, claro, é uma maneira de me ajudarem a mim, pois os meus donos amam-me muito e só querem o meu bem. Dei uma trabalheira enorme a toda a gente, até que, exausto, lá me deixei apanhar.

Cheguei a casa e dormi um dia inteiro de um sono só. Acordei e, de imediato, voltei para o meu lugar de sonho. Aí fiquei mais uma noite em que tudo se repetiu: cansaço, meu e dos meus donos, paciência das senhoras minhas vizinhas e, finalmente, novo resgate. O que eu ouvi em casa! Que era um gato mimado, que não podia ser, que me iam lá deixar para sempre, que não me queriam mais, que não deviam ter-me dado este nome de imperador caprichoso, que eu incomodava as senhoras. Puf, estava a ver que não se calavam.

Fiz como costumo fazer nestes casos em que as coisas se complicam: olhei para o lado, rebolei-me no sofá, elanguescendo os meus olhos cor de esmeralda, e afeiçoei a barriga às mãos deles. É uma estratégia infalível. Não resistem…

Na noite seguinte, como não podia deixar de ser, voltei lá. Tudo se repetiu, mas apenas até à parte em que me chamaram. O resto foi novo: subi por uma tábua de onde saltei para o telhado da chaminé e consegui voltar a casa pelo meu pé, isto é, pelas minhas suavíssimas patinhas. Quando dei conta, já estava a ser afagado pelo meu querido dono que, feliz com o meu regresso, me chamava os mais ternos nomes que, diga-se de passagem, mereço: «o gato mais lindo do mundo, o gato do seu dono, a doçura, a beleza, o douradinho, o seu querido Napoleão, o seu leopardozinho de sofá…»

Desde então tem sido um ir e vir constante e, como ando feliz, nem lhes dou trabalho, faço felizes os meus donos, embora me lembrem sempre: «foste incomodar as senhoras».

No vosso quintal já vivi as melhores horas: é um espaço de liberdade e faz-me lembrar uma pequena floresta, lugar a que pertenço por natureza e do qual sinto muitas vezes o apelo. Mas também já lá tive maus momentos. Foi o caso do desditoso encontro com um meu congénere, um vadio que por lá apareceu e me queria roubar o domínio. Não pude com a insolência de um plebeu a querer destronar-me e enfrentei-o. Lutei com todas as forças, a minha dona mais velha veio em meu socorro ao ouvir os meus gritos, e eu fiquei muito mal tratado. Foram quase três semanas de recuperação, com veterinário, injecções e um intolerável colar elisabetiano. Durante esta reclusão forçada, uma ideia não me saía da cabeça listada: voltar ao quintal. Foi o que fiz logo que os meus donos se condoeram da minha tristeza. O colar atrapalhava, mas aquela milagrosa tábua permitiu-me fazer tudo como dantes.

E é através dela que eu continuo a passar para o paraíso.

Devo-vos essa felicidade sem medida nem preço. Por isso, nesta altura, eu queria pedir-vos para aceitarem esta modesta oferta que simboliza o meu agradecimento pela vossa sensibilidade às causas felinas, a vossa generosidade e paciência. O meu sincero e sentido muito obrigado.

E como passo horas a ouvir a minha dona ler, adquiri algum sentido da poesia, pelo que me atrevo a dedicar-vos os humildes versos que se seguem:

Aqui do meu sofá quente,
Vos mando mel para o pão,
Nozes, força para a mente,
Bombons para a inspiração.

Foi o que saiu. Não posso tentar melhorar por já ser hora de ir para o vosso quintal. E não se deve adiar a Felicidade.

Do fundo do meu pequeno — mas arrebatado — coração, até à ponta dos meus sublimes bigodes, desejo-vos um Natal com tanta felicidade como a que me dão a mim. Se o passarem cá, se forem à janela, ver-me-ão sobre o muro. Nessa hora, eu lançarei um miado só para vós. Como este que aqui fica: MIAAAAUUU!

Do vosso reconhecido amigo,

Napoleão Bonaparte Felinus Amicus

domingo, 24 de novembro de 2013

A pintura de AluaPólen

[Texto escrito para acompanhar a exposição de pintura de AluaPólen, no Teatro de Vila Real até fim de Dezembro de 2013]

Com um percurso de trinta anos nos caminhos da pintura, a dupla AluaPólen tem lavrado trilhos dentro das duas coordenadas que a distingue desde o princípio: a força das cores, um caos concertante.

Sendo mais recorrente o jogo cromático de contrastes, alguns deles bem inesperados, também exploram as tonalidades de uma cor só, interrompida por notas soltas ou isoladas de outra cor, pontos de fuga que instituem um movimento perpétuo de concentração/descentração entre si e com o resto da composição. Rapidamente se torna evidente a preferência pelo azul, ora afirmando a referencialidade explícita ao mar e ao céu, ora firmando sugestões espaciais de infinito e de paisagens do sonho, num efeito de evasão mesmo quando o motivo, figurativo ou não, aponta para uma desordem do mundo exterior e interior.

Este caos afirma-se num singular tratamento do espaço urbano e da natureza. A cidade, em que se reconhece ascendência compositiva de Hundertwasser e de Vieira da Silva, não é apenas o Porto (cidade de eterno retorno) nem qualquer cidade devastada. É uma urbe em construção, um Porto — porto — aberto a todas as cidades-lugares de construção de sonhos. E quando o fechamento se insinua em aglomerados habitacionais densos, lembrando por vezes a reclusão do castelo, lá estão a energia de cores joviais, as pontes, os andaimes, a suspensão palafítica a conduzir-nos para uma atmosfera onírica libertadora.

A natureza declara-se pontualmente em aves e peixes, nas paisagens de montanha, mas sobretudo nas árvores. Em árvores de Inverno, de perfis hieráticos ou inclinadas pelo vento agreste. De silhuetas dramáticas, despidas de folhas, configuram monstros do imaginário primitivo que nenhuma vivência urbana oblitera, quando muito apenas adormece. A abertura do subterrâneo das árvores, ao expor torrões-ovos e raízes, consolida a sua antiga simbologia de Vida e propõe que só mantendo as nossas raízes nos manteremos de pé. Estas árvores são o traço distintivo mais assinalável dos AluaPólen, são a sua assinatura.

Reparar-se-á na ausência do humano nesta pintura. De facto, as cidades estão despovoadas de gente, mas adivinhamos-lhe a presença; a natureza é sem gente, mas oferece-nos os impulsos vitais: beleza e valores da raiz. As pontes — quase omnipresentes — são uma tentativa humana de unir o que está ou é separado, o humaníssimo gesto de reconciliação do mundo e com o mundo.

Importa salientar outra sensação que se vai instaurando ao percorrermos esta exposição. É o movimento, circular nas composições em vórtice, aleatório em manchas cromáticas vibrantes, que sugere um mix das infindas espirais de Bach e de acordes psicadélicos. Talvez seja essa música que anima continuamente o caos, que o detém em formações do cosmos que nos transporta para uma percepção do chaosmos (como diria Joyce) para representar a radical ambivalência do mundo.


[AluaPólen são Paula Dacosta (Alua) e Manuel António (Pólen). Residem há anos em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês.]

 

     

   

   

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Pequeno tratado sobre árvores

É sabido que muitas vezes nos descobrimos a nós próprios em confronto com o Outro, o diferente. Foi assim que tive a revelação do amor pelas árvores, na capital argentina. De rua em rua, na periferia e no centro, nos bairros pobres e nos ricos, a servir de casas, “meramente” decorativas, isoladas, em magníficos parques, Buenos Aires parece prestar culto às árvores. Árvores de muitas espécies por todo o lado irrompiam a constatação da escassez delas na nossa capital. Eu queria que Lisboa irmanasse a cidade porteña no seu saudável amor pelas árvores. Ainda por cima, Lisboa tem um clima mais propício à variedade que lhe permitiria ter árvores de uma enorme banda latitudinal — mas falta-lhe quem as ame.

A certa altura, vi uma cujas folhas pareciam o pêlo de um gato persa, e perguntei que árvore era. Responderam-me que era um cedro dos Himalaias, levado do Oriente para lá, pelos portugueses… Então redobrou-se o meu lamento: por que é que estes portugueses que atravessavam meio planeta com árvores não as trouxeram para o seu país? E se trouxeram, que pena que não tenham deixado descendência. Alguém que ardesse em sonhos de verde e desatasse a plantar árvores com zelos de megalómano. Mas não! Tem havido loucos da Europa, das estradas, do TGV... e os parques à espera.

Depois desta revelação de dupla face, procurei a génese do meu apreço pelas árvores. Verifiquei que cresceu comigo e por isso não me lembro quando nasceu. Filha de guarda-florestal, vivi doze anos rodeada de árvores e dos seus maravilhosos nomes. Atraía-me o exotismo de palavras como «tuia, pinho lariço, pseudotsuga, cedro, faia», que ainda hoje são música para os meus ouvidos e chaves para o meu coração.

Vejo nelas um dos mais belos poemas da natureza e os aspectos que assumem durante o ano parecem ter sido decididos para não nunca nos cansarmos delas. Impressiona-me a utilidade que têm, mesmo depois de mortas; espanta-me a beleza de todas e de cada uma, juntas e isoladamente. Encanta-me a carga simbólica de que a cultura ocidental e médio-oriental as investiu e que se manifesta em expressões como: «árvore da vida», «árvore da sabedoria». Entristece-me muito a perseguição e os maus-tratos de que são alvo.

É sob as árvores das florestas e dos parques que quase me sinto tocar em algo que busco continuamente e que não sei se tem nome. Sei que me surge no veludo das folhas caídas, no virtuosismo musical das ramagens, no sono das raízes, no salto inverosímil das corças assustadas através dos troncos, no latejar do silêncio solene da montanha, na chuva de luz que cai pelos rendilhados das copas, nos perfumes das resinosas, na surpresa constante dos tons outonais.

A árvore como metáfora seduz-me igualmente, pela dignidade das possibilidades que lhe garantem as raízes, os ramos, as flores, os frutos, as copas frondosas, a mutação das folhas, o facto de morrerem de pé e quando cortadas manterem uma dignidade única em cadáveres.

Não encontro destino mais elevado do que o de tentar ser árvore-metáfora em vida e o de me transformar em árvore depois de morta.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Apologia do piquenique

A Wikipédia diz que um piquenique é «uma refeição ao ar livre», «al fresco», «en plein air». Continua, lembrando que se faz preferencialmente numa bela paisagem como um parque, junto de um lago ou com uma vista interessante e também pode ser num evento público, habitualmente no verão. Parece que inicialmente, os piqueniques resultavam do contributo dos comensais, a actual “multa”. Actualmente, podem ser familiares ou de um grupo de amigos, mas também uma refeição a dois, com comida de barbecue ou não. Terão começado a vulgarizar-se no início do século XIX, com a burguesia, embora haja registso narrativos e pictóricos de refeições ao ar livre, colectivas, durante as caçadas. Creio que o povo só teria tempo para tão grato prazer nas romarias. Não se devem contar aqui as refeições durante longas travessias de caravanas pelos desertos ou montanhas, com fins comerciais ou militares, ou as merendas dos trabalhadores nas cegadas, nas vindimas e outras colheitas, pois falta-lhes o lazer como objectivo principal.

Para além destes, que outros elementos deve ter uma refeição para ser considerado um piquenique? Uma manta e um cesto ou sucedâneos improvisados destes, cadeiras apropriadas e/ou almofadas. As árvores também são fundamentais, pela fundamental sombra, se for Verão. Parece-me que o convívio, alargado ou íntimo, também é essencial. Mas isso pode ter-se em casa. Se nos damos ao trabalho de preparar o aparato, de combinar o ajuntamento — ainda que reduzido a dois — deve ser porque é uma experiência especial, talvez por nos permitir voltar ao princípio dos tempos, sendo nómadas e sem-abrigo por umas horas. Isto agrada-nos porque temos muita confiança nos confortos do sedentarismo.

Já o (di)vino Omar Kayam, que aqui transcrevo em versão inglesa, registava esta sensação de prazer primordial, até porque reduzida ao essencial: poesia, pão e vinho. What else?

A book of verse beneath the bough,
A loaf of bread, a jug of wine, and thou
Beside me singing in the Wilderness —
Ah, wilderness were paradise now!

Haverá muitas e mais profundas razões para fazer um piquenique. Para mim, é a saída da rotina das quatro paredes da sala de jantar, ou da cozinha, que me anima. O que é certo é que adoro piqueniques e lamento fazer tão poucos, por falta de estímulo das eventuais companhias.

Já os fiz com amigos, em família, com companheiros de viagem, junto de um riacho, à beira-rio (o Douro tem tantas possibilidades escondidas), na neve (sim!), na varanda de um hotel com excelente vista, debaixo de uma ponte, numa gruta para abrigar do vento, nocturnos, sobre uma enorme fraga (a mesa) no meio de um vale, em parques de lazer, sobre uma muralha, no Outono, na Primavera, ao almoço, como lanche, como jantar e como ceia, para ver nascer a Lua cheia. Mas nunca me tinha ocorrido o piquenique ao pequeno-almoço. Como é que nunca me tinha lembrado disto? É das experiências mais aprazíveis — talvez também por nos sentirmos únicos a fazê-la: chegar à praia antes do sol nascer, dar umas boas braçadas naquela água que parece uma língua sedosa a afagar a pele toda e depois sentar a uns escassos metros da linha de espuma e tomar o pequeno-almoço, com o pão fresco comprado na padaria que foi preciso esperar que abrisse, com a brisa carregada de salpicos e a quentura do sol nascente a amornar a pele. Luxo dos sentidos!

Já vi deixar ossos de frango e sacos plásticos no chão, um casal idoso com um ar ditoso, piquenicar numa saída de emergência de uma via rápida. Também já vi as margens do Sena fervilhantes de piqueniques: numerosas famílias árabes, contidas famílias francesas, pares românticos, tudo lado a lado, quase sem espaço para a manta, numa noite de Agosto de 2005, invulgarmente quente. Que atmosfera jubilosa. Que vontade de dar graças à vida. Que oportunidade para nos lembrarmos dessa maravilha de que às vezes nos esquecemos, egoístas nados e criados nela, e que é a Paz. Ocorreu-me isso, ao olhar para uma senhora com mais de 80 anos. Sessenta e cinco anos antes, aquela noite de alegria piqueniquista seria, não só impossível, como impensável.

Seja déjeuneur sur l’herbe, sur la table ou sur le sable, cabe aqui evocar o nosso Cesário Verde e o seu piquenique de burguesas, onde pontuavam boa comida e «o supremo encanto da merenda / o ramalhete rubro de papoulas».

Com o Outono já entrado no calendário e nas ruas, não há o garrido das papoulas, mas as folhas caducas começam a pintar. É uma excelente oportunidade para comer os saborosos frutos desta época sob uma copa ou sobre um tapete de folhas coloridas de plátanos, carvalhos americanos, liquidâmbares, faias… Venham dias de sol e piqueniquemos, amigos, piqueniquemos.

sábado, 7 de setembro de 2013

Ode Radical

Com um «muito-obrigada» ao Sr. Álvaro de Campos e para provar à
minha amiga Ângela que Fernando Pessoa também fez
canyoning


ODE RADICAL

À dolorosa luz do grande sol de verão
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida de muitos amigos.

Ó pedras, ó ramagens, ó inferno!
Forte espasmo repetido do coração em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos ressequidos fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes vícios modernos,
De vos sentir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó actividades radicais na água!

Em febre e olhando a montanha como a um desafio total —
Grande tópico natural de terra e fogo e força —
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro —
E há Plutão e Apolo dentro das serras e das fragas magnéticas
Só porque houve outrora e foram divinos Apolo e Plutão
E pedaços de alpinistas do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro de Ésquilo do século cem,
Andam por estes carreiros de transpiração e por estes calhaus e por estes arbustos secos,
Murmurando, raivando, ciciando, suando, escorregando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me toda como um rio se exprime!
Ser completa como uma montanha!
Poder ir na vida triunfante como uma torrente de última hora!

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me toda, abrir-me completamente, tornar-me passenta
A todos os perfumes de pedras e calores e águas
Desta paisagem estupenda, bruta, natural e incomensurável!
Fraternidade com todos os caudais!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do saltar assombroso e temerário
Das cascatas estrénuas,
Da faina elevadora-de-adrenalina dos que apoiam,
Do giro lúbrico e lento das cordas,
Do tumulto indisciplinado das quedas de água
E do silêncio sussurrante e monótono dos charcos de transição!

Horas no Poio, loucas, entaladas,
Entre escarpas e pegos!
Grandes seixos parados no leito,
No leito — oásis de repouso merecido
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do cansaço.
E as fragas, e as fragas-estendidas e as lagoas de frescura!
Nova Circe com alma dos rios!
Quilhas de fragas sorrindo encostadas às margens,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos taludes!
Actividade emocional, transpirante, Pena Aventura!
Deslizes e febris agitações no tempo, no ar, na água,
Nos desfiladeiros das Fisgas e do Cares,
E nas quedas do Iguaçu e de Niagara que entram
Pela minh'alma dentro!

Hé-lá as lajes, hé-lá os declives, hé-lá la folie!
Tudo o que passa, tudo o que pára ao sol e à sombra!
Peixes, pássaros, aranhas exageradamente bem-instaladas,
Membros evidentes da polícia local de insectos voadores;
Salientes figuras alerta; alfaiates de rio tontos
E fictícios até nas patas exageradamente longas que movem como robots
De ribeira em ribeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença bem-vinda das libelinhas,
Jóia azul-petróleo com asas (e quem sabe donde vem e para onde vai…),
Das florzinhas, muito discretas geralmente,
Que oferecem cor aos insectos com o fim que se sabe.
A graça feminil e falsa das cobras de água que passam lentas
E toda a fauna e flora simplesmente existente que passeia e se mostra
E afinal tem calma lá dentro!

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das árvores apocalípticas,
Deliciosos escândalos das leis da gravidade e da reprodução,
Transgressões dos cuidados a ter no crescimento,
E de vez em quando o meteoro dum tronco encalhado
Que ilumina de Prodígio e de interrogações os recantos obscuros,
Singulares e solitários numa quieta e sóbria melancolia!

O cheiro fresco a água corrente
Deste regato e da que corre na minha infância longínqua.

O suave chocalhar da água entre os calhaus.
As ervas molhadas, ainda luzidias!
Como eu vos amo a todos, a todas,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Músculos másculos, tapetes de líquenes, granito rosa!
Rosa, cinzento, amarelo, transparência das águas, lodo resvaladio
Ó mostruário de seres anfíbios,
Dos seres anfíbios, cavaleiros-andantes da loucura inútil,
Prolongamentos contemporâneos de homens do leme, sebastiões
E outros tantos tontos!

Ó barras de cereais! Ó sanduíches! Ó contenção no apetite!
Ó mantimentos líquidos que toda a gente quer beber!
Olá grandes sedes sem fim!
Olá garrafas de água que vêm e circulam e desaparecem!
Olá tudo com que hoje a gente se distrai, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, enxurradas, rappels, raftings, tobogans, canyonings, novos divertimentos!
Divertimentos importados, gloriosamente perigosos!
Canoas, botes, ganchos, capacetes, cordas, roldanas!
Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera,
Amo-vos carnivoramente,
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, extremas, excessivas, inúteis,
Ó minhas contemporâneas,
Nova Revelação desportiva e dinâmica de Deus!

Ó rios, ó rápidos, ó salva-vidas, ó Grand Canyon
Ó pontos altos, ó gargantas fundas, ó delicioso frisson
Na minha mente turbulenta e incandescida —
Possuo-vos como a um homem belo,
Completamente vos possuo como a um homem belo que não se ama.
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssimo.

Eh-lá-hô fachadas das grandes descidas!
Eh-lá-hô poços sem fundo à vista!
Eh-lá-hô composições minerais!
Quartzo, feldspato, mica, mármore, xisto, gemas.
Gemas não falsificadas!

(Uma jóia é tão natural como uma erva
E um arnês tão belo como uma borboleta).

Eh-lá o interesse por tudo na vida,
Porque tudo é a vida, desde os rasgões nas mãos
Até à brisa, ponte misteriosa entre pontos desconhecidos.
E o rio antigo e solene, lavrando as costas,
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Plutão era realmente Plutão
Na sua presença irreal e na sua alma sem carne por fora,
E falava aos humanos, que o haviam de esquecer.

Eu podia morrer triturada por uma pedra
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro dos remoinhos!
Metam-me debaixo dos penedos!
Lancem-me para dentro da voragem!
Masoquismo através das águas!
Sadismo de não sei quê moderno e muito antigo e eu e barulho!

Up-lá hô remador que ganhaste a partida,
Morder entre dentes o teu remo de dois fins…

(Ser tão forte que não pudesse permanecer em casa!
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, quase-grutas dos cachões secos!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas arestas,

E ser levantada do chão cheia de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!

Ó fatos-de-banho, fatos de neoprene, capacetes,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!

Hilla! hilla! hilla-hô!

Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó rios apinhados de sonhadores e de parvos.

Ó poucos, mas impetuosos os dos caminhos da aventura,
Ó rios anónimos e onde eu me posso banhar como quereria!

Ah, e a gente ordinária e parda, que parece sempre a mesma,
Que se deita ao sol o dia inteiro,
Cujos filhos se corrompem nos centros comerciais
E cujas filhas aos oito anos
Vêem filmes proibidos nos canais pagos da televisão.

Mas, ah outra vez a raiva aquática crescente!
Outra vez a obsessão movimentada das águas.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os rios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus do bordo de todos as margens,
Que a estas horas estão frescas e sem ninguém.
Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao choco e monótono ruído contemporâneo,
Ao ruído mudo e estafante da civilização de hoje?

Eia argolas de cordas, eia mochilas, eia céu azul,
Instrumentos de protecção, aparelhos de andar mais depressa,

Eia! eia! eia!
Eia ímpetos, nervos potentes da Acção!
Eia pernas ágeis, simpatia divina do Movimento!

Eia! eia! eia!
Frutos do corpo e da fome de além.
Eia! eia! eia, eia-hô-ô-ô!

Nem sei que existo para fora. Giro, balanço, caio.
Engatam-me em todos as amarras.
Içam-me em todos os precipícios.
Penduram-me em todos os abismos.

Eia! eia-hô eia!
Eia! sou o fogo e a água e o ar e a terra!

Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, montanhas e rios, eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-lá! He-hô Ho-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

Ah, não ter eu energia sempre e em toda a parte!

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Les neiges d’antan

A minha sétima viagem à Polónia ocorreu no fim do inverno de 1997.

Tinha resolvido ir de avião até Berlim oriental e seguir de comboio. Num comboio, russo, aconselharam-me, já que, a caminho de Moscovo, passava em Wrocław, a cidade a que me dirigia.

A Europa estava sob uma rara vaga de frio, o que atrasava imenso os voos.


O comboio para Moscovo

Cheguei a atrasada a Amesterdão, por isso ao chegar a Berlim, a bagagem já se tinha perdido.

Quando, na bilheteira da gare, quis comprar a passagem para Wrocław, disseram-me que o tal comboio russo funcionava de maneira especial e que os bilhetes se tiravam no próprio. Esperei no meio de uma chusma de passageiros russos que achavam que eu era italiana.

Chegou, parou e de cada carruagem vi sair uns homens altos, de sobretudo de filme sobre a Segunda Guerra Mundial. Não falavam inglês e quando pedia o bilhete, recebia um monossilábico «nie» pronunciado gelidamente entre dentes, ricto da máscara soviética que apesar de oficialmente caída, ainda não se descolara dos rostos de quem a usou toda a vida.

O tempo corria contra mim e eu contra a multidão de passageiros que discutia muito com os dos casacões soviéticos. Procurava quem me ajudasse: Do you speak English? Parlez-vous français? ¿Habla usted español? Parla italiano? As cabeças baixavam embicando para a fila desconjunta que se enfiava pelas carruagens dentro. Os menos antipáticos repetiam o refrão dos guardiões: «nie, nie». Esta gente vestia roupas que só vira nos camponeses e operários dos filmes soviéticos e tinha um ar demasiado ansioso, para se preocupar com as necessidades de uma turista. A certa altura, um homem, pelos seus trinta anos, corpulento, de cabelos louros longos e sério como um boiardo dos romances russos, saltou da carruagem com a ligeireza de um tigre e postou-se à minha frente: «I can help you, madam.» Pareceu-me caído do céu este anjo louro, de olhos quase brancos (ruços, diria a minha avó). Disse-lhe que precisava de ir naquele comboio e que queria tirar o bilhete. Falou, na minha companhia cada vez mais inquieta, um a um, com todos os sobretudos que sovieticamente respondiam «nie, nie». No fim da nossa fracassada demanda, ele aconselhou-me: «quando o comboio arrancar, eu ajudo-a a subir e viaja junto de mim, lá havemos de nos arranjar». A força que os seus longos e musculados braços prometia não foi suficiente para me convencer. Perguntei-lhe o nome, já o comboio rolava: «Dimitri». «Bye, bye and thank you, Dimitri!». O comboio começou a andar e eu hierática, passageira única naquele cais subitamente deserto, a olhar para os rostos cansados que passavam, emoldurados pelas janelas do comboio em andamento. Ainda consegui sorrir e dizer adeus. O que tinha visto durante a busca do bilhete fazia-me sentir que tinha sido sensata, mas não conseguia impedir um arrepio na espinha ao pensar no que estes funcionários treinados num regime sem respeito pela vida humana poderiam fazer a uma passageira clandestina, ao longo de centenas de quilómetros cobertos de neve. Para além de muitos sacos suspeitos atirados à pressa para dentro das carruagens, vi passageiros desaparafusarem o forro do tecto da carruagem. Estranhei o cuidado e o receio de serem apanhados naquele óbvio trabalho ilícito e perguntei ao meu salvador louro o que faziam. Ele encolheu os ombros, olhou-me com aqueles olhos de água fria e disse-me: «Smuggling».

Dei os primeiros passos, no cais abandonado, sem plano. Procurei o hotel mais próximo e verifiquei que o comboio seguinte para Wrocław me deixava 10 horas para descansar.

Berlim–Wrocław

O acaso sentou-me ao lado do baterista dos Europe que não viajava de avião. Comunicativo por excelência, era a estrela incógnita do compartimento que se ia enchendo de ciganos. Quando os homens me começavam a incomodar, este músico alegre levantava-se e convidava: «Smoking time», «Drinking time». De modo que a certa altura o compartimento era o mais procurado de toda a carruagem ou até de toda a composição e, para bem do meu sossego, consideravam-me companheira do baterista, também ele já embriagado. Cantou-se, comeu-se, bebeu-se, dançou-se, numa babel linguística delirante. Este ambiente carnavalesco, os ritmos, os rostos, a curiosidade em relação à minha origem exótica («Portugalsko?!») revê-los-ia, mais tarde, nos filmes de Emir Kusturica.

À chegada a Wrocław, estavam 25 graus negativos, algo que quem nunca viveu nem abstractamente concebe. Por mais que me gritassem que não tirasse as luvas para introduzir o cartão na cabine telefónica, era-me difícil imaginar que menos de um minuto pudesse ter dores tão intensas que quando as recordo ainda me afligem.

Por causa deste frio, extraordinário até para a Polónia, morreu muita gente, sobretudo alcoólicos que caíam no chão e ali ficavam congelados. As pombas acordavam com as patas incrustadas no gelo e, para sobreviverem, arrancavam-nas, aos cães punha-se-lhes vaselina nas patas para evitar destino semelhante ao das pobres pombas. Na rua viam-se quase só homens jovens, cujas silhuetas, na neblina, pareciam fantasmas, enchouriçados por poderosas parkas. Altos, com os gestos embotados pelos agasalhos lembravam ursos lentos. Mais tarde reconheci-os nos habitantes da Sibéria do livro de Ryszard Kapuściński, O Império. E eu sempre com a mesma escassa roupa, porque a mochila ainda não tinha chegado. Quem sabe por onde andaria…

Berlim outra vez

De Wrocław até Berlim, o comboio seguiu quase vazio e apenas registo a estranheza dos polícias de fronteira a quem uma portuguesa sozinha levantava suspeitas. Tive de responder a vários sobre a mesma pergunta: «o que tinha ido fazer à Polónia?».

Ao chegar a Berlim oriental, outra vez a surpresa da escassez de iluminação da cidade, então tão característica nas urbes de Leste. Não imaginava que 16 anos depois veria cidades do meu país imersas na mesma semi-obscuridade. O aeroporto fechava à meia-noite, pelo que me dirigi a Alexanderplatz de metro. A fauna era assustadora: um espécime feminino nitidamente embriagado ensaiava dança do varão e aterrava em transe sobre os colos de homens que educadamente a protegiam do espectáculo de decadência; matilhas de jovens tatuados tilintavam correntes que usavam dos pés às orelhas suspensas de ninhos de piercings e entoavam cantos bárbaros. E eu encolhida no meu canto, com a minha mochila recuperada no aeroporto, no último dia antes da partida da Polónia. Saí para a rua e procurei um táxi que me levasse a um hotel onde pudesse passar as oito horas que faltavam para o voo Berlim–Amesterdão. Uma hora depois de bater com o nariz na porta de hotéis que fechavam às 23h, o taxista, moído de piedade e de impotência, desligou o taxímetro e não sabia onde me deixar numa noite de sábado em que havia «too many crazy people». Lembrei-me de um Burger King que sabia permanecer aberto de noite e pedi para me deixar lá. Preparada para ali passar a noite, pedi café e instalei-me o mais comodamente possível a ler uma tradução francesa de um livro Anna Akhmatova.

A certa altura, comecei a detectar o padrão sonoro do movimento dos clientes: chegavam, eram servidos e partiam. Passadas horas e em luta franca com o sono, começaram a visitar-me as tentações de quando trabalhava em turnos nocturnos: uma valorização tão grande da possibilidade de dormir que um exíguo recanto no chão começava a ganhar confortos insuspeitos de cama. E já a sala estava em silêncio há bastante tempo. De súbito, uma silhueta masculina jovem acerca-se de mim, aponta-me uma arma — sim, uma arma de fogo, pistola, revólver, sei lá! — e fala-me em alemão. Não tento perceber o que diz. Não ouço. Só vejo. Todo o meu ser sentiente e pensante está concentrado naquele cano de saída de um projéctil. Todo o meu ser grita para dentro a mesma frase: «Ele vai matar-me!» E eu incrivelmente sossegada. Resignada ao meu destino, ainda chego a pensar: «É um daqueles doidos que entra nos restaurantes e mata tudo, não posso fazer nada». De repente, um ruído no balcão vazio. O meu ameaçador esconde a arma sob um trapo. Os gestos são lentos: ele olha para a fonte do ruído, eu também. E olho uma outra vez aquele terrível orifício do cano da arma. O ruído no balcão aumenta de volume e prolonga-se. Ele dirige-se ao balcão. Penso: «vai matar primeiro o empregado, tenho de fugir». A única porta livre fora da sua possibilidade de barragem fica no lugar oposto à entrada. Levanto-me e decido-me. Volto para trás para levar pelo menos a carteira de mão. A mochila que se lixe. Ao retomar o passo, dou conta de que tenho as pernas encortiçadas pelo medo. Luto, impondo a mim mesma: «tens de sair daqui». Desço por umas escadas que dão para a casa de banho. Entro e ocorre-me: «aqui é que ele me mata sem ninguém dar conta». Saio, subo as escadas e entro por outra porta que encontrei. Vou dar à cozinha e a minha aparição assusta o empregado. Conto-lhe tudo, ele chama a polícia que chega com uma prontidão germânica. Entro no carro policial, damos uma volta, mas nem rasto do indivíduo cuja cara — creio — não cheguei a olhar. Findas as démarches da queixa, reentro no Burger King que nesse momento me pareceu um saloon de western. Só penso em sair dali, mas ir para onde se na rua estão 17º negativos? Revejo os acontecimentos da última hora e já não acredito que aconteceram. Preciso de integrar esta irrealidade. Mas tenho a certeza do cano apontado ao meio da minha testa. Foi mesmo verdade! E por que é que ainda agora saí do carro da polícia? Aconteceu-me mesmo!

Saio para a rua, apanho o primeiro autocarro para o aeroporto. O ar condicionado, a segurança, fazem-me sentir chegada ao paraíso. Falo com dois americanos que andam a dar a volta ao mundo de bicicleta. Aprecio-lhes as magníficas máquinas (de pedalar e de fotografar), convidam-me a fazer-lhes companhia até à Nicarágua. Eu penso na Nicarágua que me espera no dia seguinte, às 9h, numa escola esconsa da Régua.


Paris–Porto

Ao chegar a Amesterdão, o avião já tinha partido para o Porto. Só me restava a rota por Paris. O Charles de Gaulle, com os voos atrasados horas, parece um aeroporto da Índia. As pessoas deitam-se pelo chão, sobre as malas que arrastam desoladamente. Torno-me intérprete de quem não fala francês, mas a Air France é muito lacónica em informações. Só sabemos que temos de esperar, não sabemos quanto tempo. Compro Testaments Trahis de Milan Kudera e a espera deixa de me preocupar. Vamos quando formos.

A meu lado, noto que sou alvo da atenção de um jovem. Olho-o, aproxima-se e diz-me que conhece o autor. Sorrio pela estratégia bastante primária. Mas é simpático e eu preciso de contar o que vivi para acreditar. É o que faço, mas acho que ele começa a pensar que lhe saiu uma maluca com vocação fantasista.

A certa altura ele diz-me que vem para o Porto e cotejamos cartões de embarque: o mesmo voo, lugares separados. Ele em classe executiva, eu em económica. Posto que eu não era uma passageira prevista para aquele voo, informam-me mais tarde que o meu bilhete foi alterado… Para um lugar na executiva, claro, mesmo ao lado do Georges. Com toda a Europa debaixo de temperaturas negativas, aposto com o comissário de bordo em como o Porto é a única cidade com o termómetro a marcar acima do zero. Ele e o Georges sorriem complacentemente; eu, com ar de vitória. O meu companheiro de viagem esclarece-me que não vai exactamente para o Porto, mas para uma cidade mais ou menos a 100 km e pergunta-me se sei como pode lá chegar àquela hora. Fico a saber que temos o mesmo destino final e tranquilizo-o dizendo-lhe que tratarei de tudo.

Duas horas depois de aterrarmos estamos em frente ao hotel onde ele passará a noite para no dia seguinte reunir com os concessionários da Renault da zona nordeste de Portugal. Pede-me o endereço do meu local de trabalho.

Regresso à vida-vidinha

Eram 16h do dia seguinte, estava eu a dar uma aula de Francês, quando uma auxiliar de acção educativa me interrompe para me dizer que está ali um senhor francês que me quer ver, que insiste muito, nem que seja só por dois minutos. Digo-lhe, convicta, que só pode ser engano, que não conheço nenhum francês. Olho por detrás dela e vejo, dirigir-se a mim, com um ramo de rosas e um cartão, o Georges que me diz apenas isto: «Il faudrait que je fasse cela. Merci. Si un jour tu vas à Paris, cherche-moi à cette adresse.» Fiquei a olhar para a sua silhueta até dobrar a esquina, voltei-me para a turma, que assistiu a tudo em silêncio, e, com as flores no braço, disse-lhes: «je vais vous raconter cette histoire». Não sei se entenderam tudo, mas foi das poucas vezes em que senti as minhas palavras entrarem-lhes pelos olhos fixos adentro.

Nunca mais vi o Georges, a escola fechou, nunca mais fui à Polónia. Contei esta história poucas vezes e durante muito tempo não consegui olhar de frente o cano de uma arma de fogo no ecrã. Dezasseis anos passados, já não vejo filmes com cenas destas e se não entro no Burger King é porque nunca gostei do que lá se come ou bebe. Só agora escrevi esta viagem porque só agora regressou a vontade de viajar sozinha.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Voando sobre um ninho de cucos

Para ti, para quem a burocracia é inútil, porque cumpres mandamentos da tua consciência, proponho-te esta ordem de trabalhos.

PONTO UM: abrir as asas e arejar bem as penas fofas, fazer um voo rasante às cabeças dos presentes (resistindo à tentação de lhes bombardear a cornadura), anunciar-lhes chuva e pardas recordações, depositar-lhes ovos no ninho dos falsos escrúpulos, jungi-los às suas silhas rangentes e aos seus cargos pleonásticos de plástico, deixá-los a afiar os dentes rapaces e a polir o pêlo ralo dos chefes nos desvãos infectos da intriga, servir-lhes uma ceia em que todos (se) possam lambuzar (e sempre com a parelha bem arreada de vantagens). Eis o menu:
Entradas:
Má-língua à Narciso
Folhado de mexericos
Pastelão de lisonja à louvaminheiro
Pratos Principais:
Coxa de incompetência em cama de invejas apuradas
Vol-au-vent de ordens de serviço incongruentes
Lombo de maus exemplos com batatinha de frustração
Sobremesa:
Baba de reuniões improfícuas com redução de rigor
Crepe de complicações inúteis
Fofo de inépcia em coulis de encomiasta

PONTO DOIS: pedir-lhes que dêem uma volta exacta nos seus cascos e deixá-los assim sérios e graves circunloquiando a marcha fúnebre da manada.

PONTO TRÊS: prepararíamos voo alto, certamente mais pesados, porque estas alimárias, ao ver-nos alados, rechear-nos iam os ossos com pedras, e migraríamos rumo a cidades onde houvesse jardins, bibliotecas, catedrais e grandes esplanadas junto de rios onde pudéssemos mergulhar os bicos sedentos de águas claras. E voaríamos, voaríamos, pousando no dorso de qualquer coisa longínqua bordada a ponto de vontade de estar juntos, tecida nos antípodas destas salas de empalhar paciência.

E nada mais havendo a retra(c)tar, dar-se-iam por encerradas definitivamente todas as sessões de faz-de-conta-que-temos-poder-para-decidir sobre coisas que hoje são o último grito do luxo e amanhã serão alegremente despejadas no lixo.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

No ar

(Paris–Hong Kong)

Lá fora a imensidão, uma medida tangível do tudo e do nada. A atravessá-la, o ronco perfurador das lâminas de aço da barca voadora. Para trás, ficam soluços de nuvens rasgadas, o rasto de vapor microespumejante, o rouco rugido das entranhas do monstro estratosférico.

Cá dentro, pelo corredor, de bandeja ou carrinho, «sumo ou água, chá, chá, café? Com licença, duty free, duty free»... Passam os pregões secos dos comissários de bordo. Arvoram uma polidez dura sem disfarçar um certo enfatuamento escuso, supremamente deslocado na hora do avental como uniforme.

Supremamente indiferente ao lá fora e ao cá dentro, resiste o sono de centenas de passageiros às rajadas de um baralho de cartas em jogos de paciências e ao choro arranhado de duas crianças. Nada disto ameaça o sossego do bojo desta baleia alada.

Fetalmente dobrados, pendendo a cabeça em ângulos ortopedicamente incorrectos, embrulhados em exíguos cobertores de bordo, eis os passageiros, senhoras e senhores, feitos figurantes involuntários de uma encenação de Mateusz Kantor ou desertores de uma tela de Magritte.

De quando em vez, arrítmicas irritações dos ares sacodem, em ondas turbulentas, o corpo gigante do pássaro de aço. E sempre inquietam sonos e insónias. Atavismos de naus balouçantes, e nós aqui sem chão! Mar que fosse...

Sem nada que o anuncie, o passageiro a meu lado desperta. Estica os membros numa extensão insuspeita, parecendo que o sono o tornou elástico. Agora é um pássaro estremunhado. Pousa, ajeita as asas, enrola-se e aninha-se no assento que, entretanto, reclinou, e eu olho o filme que passa. Palra a pega que repousa no ombro da personagem adormecida. Abutres de westerns, corvo de Poe, falcão de rainhas de bandas desenhadas, pássaros de Hitchcock, gaivotas na gávea, cuco de Março, pardais ao ninho, mochos piadores, o íbis de Pessoa, rouxinóis para meninas românticas, todos invadem o convés desta arca ornitológica pilotada por um Ícaro em festa.

Ah, Bartolomeu de Gusmão, irmão etéreo, se a tua passarola voasse no tempo e te transportasse ao coração do teu sonho...

E tudo isto no ar, elemento em que rola fácil a esfera da metamorfose.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A última road trip

Era para ser a última road trip. Por isso, queria que fosse típica, a arriscar o kitsch: malas, livros de poesia, cesta de piquenique, manta, equipamento para preparar refeições ligeiras, guarda-roupa temático, máquina fotográfica, mapa assinalado nas Bardenas, algum outro parque natural e cidades interessantes que ficassem no itinerário. Os CD’s tinham sido escolhidos entre as bandas sonoras dos filmes de Tarantino e afins. De resto, muita alegria, espírito do acaso, vontade de rebentar amarras de horários, canseiras, fracassos, rotinas.

Acontecimentos de última hora aconselhavam a não entrar na aventura, mas uma até então incógnita dose de optimismo impôs-se.

Las Bardenas Reales

A primeira cidade, mero posto de reabastecimento, nem sequer consta da rota. No dia seguinte, o hotel de estrada cheio de gente, ruído e aquela decoração que se torna impessoal à força de tanto querer ser personalizada, lixo da América vomitado sobre o coração da Ibéria. Mas os 15 km que o separavam do destino, as semi-desérticas Bardenas Reales, pesaram como argumento decisivo.

Vista pouco antes do pôr-do-sol, esta paisagem lunar surpreende por estar tão vazia de curiosos. Será porque é um cenário em que, ao longo dos 31 km de circuito para automóveis, as formas da desolação geológica se vão tornando personagens interrogadoras do nosso apetite pela desmesura? Não imaginava tanto desinteresse por esta exibição formidável de formações estranhas: gigantescas patas dinossáuricas do solo escorrencial, penhascos de recorte grandcanyonesco, listas vermelhas a marcar as camadas geológicas, a surpresa dos charcos ainda com água, ao lado da pele gretada do solo. O espanto imenso perante o grand large abre brechas por onde passa o hálito da angústia. E sobe o silêncio fora e dentro de nós.

Sem bicicletas nem a Vespa do plano inicial, outra volta de automóvel seria redundante. E assim ficam vistas as sonhadas Bardenas. ¡Hasta la vista!


Tudela

Toureiros em traje de luces no hotel levam à pergunta sobre o quando e o onde de la corrida. Em Tudela, durante as festas, há toiros todos os dias. À noite, jantar na cidade, num ambiente animadíssimo. Arriscaria dizer que os únicos que não andam vestidos de branco e vermelho são forasteiros. A faixa ou outro acessório vermelho sobre o geral branco lembra o sangue, os touros, o vinho tinto, o espírito garrido das gentes. Da Plaza Mayor sai um bruaaaá alto de mais para parecer um idioma, por muito habituados que os nossos ouvidos estejam ao falar martelado dos espanhóis — e por muito que o apreciem, como é o caso. Mas não era nada comparado com o do restaurante: rajadas de sílabas fortes em /a/, sequências de oclusivas muito intensas, formando uma algaraviada disparada para todo o lado, que nos impedia de nos ouvirmos à volta da mesma mesa, ainda que pequena.

Zaragoza

Incursão fugaz apenas para sentir a atmosfera da cidade à volta da magnífica Catedral-basílica de Nossa Senhora do Pilar e do Ebro. O calor, a utilíssima loja dos «chinos», que aqui lembram as dos árabes em França, o café na esplanada e o movimento de um domingo de manhã convidam a voltar sem pressa.


Cuenca

Para a frente é que é caminho e a direcção decide-se no momento. Depois de quilómetros de planície de campos de cereais louros recém-barbeados, o anúncio de um conforto aquático: «Laguna de Gallocanta». De placa em placa passaram mais de 20 km e o galo da laguna sem cantar. Um nativo informa que não se pode ir até à água de carro e, com seca ironia, que a pé só se a certa altura formos a nado… porque está rodeada por um pântano. Então fez-se o piquenique ali mesmo, numa via que dá acesso à laguna, perdão, ao paul, que não havíamos de ver. De repente, esta frase: «Já viste, quase de certeza que nunca mais voltamos a este lugar». Cresce a perturbação que perfura a consciência: «A este e a muitos outros».

Com Cuenca na mira passa-se por alguns desfiladeiros que, apesar de assustadores, não ferem uma dimensão mais humana da paisagem deste trajecto. A entrada é a de uma urbe espanhola moderna e, a certa altura, o movimento já tem ritmo de central e ainda não se vê nada digno de visita até à indicação das «casas colgadas». Lá estão elas inverosimilmente alcantiladas sobre as aflorações rochosas. Para onde haveriam de crescer as edificações entre o apertado abraço dos rios Júcar e o Huécar? E que lugar para a meditação! Não admira a quantidade de mosteiros. As formações líticas enfileiradas lembram colónias de cogumelos ou um bouquet juntinho. A praça central trai a hispanidade com os seus ares de Toscânia, reconhecíveis até por quem nunca esteve para além dos Alpes. Cada recanto é um vício fotográfico feito de paredes velhas mais ou menos restauradas e ruas estreitas. Apanhamos a catedral a tomar banho de sol poente. O jantar é servido por um empregado de mesa a quem agradeço a ternura desta frase, porque dita num tom tão carinhoso e tímido que só parece verdadeiro: «Me alegro mucho que le guste, señora.»



Toledo

Entro na cidade pela terceira vez e uma ideia flameja: ficar no Parador Nacional. Ao seguir as indicações, a ideia ganha razões: uma cidade bonita só se vê de outra margem do rio, e/ou de outra colina, como aprendemos com James Ivory, no filme Room with a view. Mesmo sabendo isto, não podíamos estar preparados para o postal que desfraldou ao abrir as portas da varanda nem que este panorama arrasador pudesse melhorar com os cambiantes de luz ao longo do dia.

A cidade é dominada pelo arrogante Alcázar Real . São várias as construções religiosas e castrenses esmagadoras que, juntamente com o dédalo da judiaria, os ângulos sobre as curvas do Tejo, as pontes oferecem mil e uma possibilidades a olhos inquietos.

Nem um cliente espanhol no Parador. Um sinal da crise? Orientais, russos, franceses — ceux-ci sont partout! — e estes dois portugueses.



Ávila

O nome da cidade na rota tornou obrigatória a paragem: por Santa Teresa e pelas grandes muralhas.

É a última morada antes do regresso. Balanços feitos, concluo que vale a pena ir, sem pré-visitas da Wikipédia, do American Express nem visitas guiadas locais, mas ir, ir. Sabe-se menos, é certo. Se se sente mais por se chegar de olhos nus ansiosos, não tenho certezas.

Os silêncios favorecidos pela grandeza das paisagens, o atar de pontas de conversas e de velhas histórias comuns em registo de monólogo, o vinho bom a favorecer a conversa, a comida recomendável, com excepção dos monotemáticos pequenos-almoços, em que pontua o mau pão, seco, palhuço, desalmado, o rigor indumentário que nunca abandonei, fazem-me acreditar que esta viagem aconteceu mesmo. Penso nas palavras da grande mística de Ávila: «basta uma graça dessas para transformar uma alma por inteiro». As paisagens interiores reveladas pelas fotografias bastam para mudar a vida.

Foi a road trip possível. Será a última?

segunda-feira, 29 de abril de 2013

No comboio ascendente

Um vagão reciclado em esplanada de restaurante.
Uma fila de freixos brancos faz sentinela à porta leste da cidade.
Um cavalo na margem do Corgo sacode a crina, soltando notas de graça e distinção.
Lixo, lixo e mais lixo — a praga infestante das bermas portuguesas.
Um bairro de barracas de ciganos — todos sabem onde estão, como vivem, mas ninguém lá vai. Pudera! É um estado — um estábulo — à parte.
E já o rio corre à distância de um salto das janelas do comboio. Será por isso que seguem fechadas?
Há um catálogo de penteados na paisagem que passa: frisado na superfície do rio, entrançado afro nas vinhas ao alto, crespo natural nas terras incultas, solto nos ramos ao vento das sálix babilónicas.
Súbitas casas apalaçadas, quase castelos, mas também algumas ruínas de antigas prosperidades.
A graça de um topónimo diminutivo: Covelinhas.
Proibido circular a pé — cartaz onde revejo as caminhadas proibidas na linha do Corgo, no tempo em que nela circulavam comboios.
A folhagem dos ulmeiros, nervosos cata-ventos.
Opuntias, acácias, figueiras, funchos, plátanos, eucaliptos, laranjeiras definem a flora arbórea.
Barcos a subir e a descer e a deixar aquele rasto que é sempre mais bonito quando se vê do que quando se recorda.
Reverbera uma profusão de espelhos: lisos nas escarpas cortadas verticalmente no xisto e na superfície imóvel do rio, partidos nas diminutas ondas-obra-do-vento.
Montes inteiros em estado selvagem — «imaginem isto tudo cultivado!» — Desentendimentos de herdeiros? Perigosas imprecisões dos limites? Preços incomportáveis do arroteamento?
As suaves curvas do rio, as vinhas ao alto — leques da paisagem. Fileiras de árvores cortadas na margem — até aqui a obstinação arboricida persiste!
Hortas perto das estações, praias de laranjais, de vinhas, e de vez em quando uma ave de rapina patrulha o rio.
A Quinta dos Aciprestes com bom vinho, bardos ao alto e perfis toscanos nas árvores fúnebres.
«Aqui toda a gente podia ser de classe média ou alta, mesmo os trabalhadores», diz a minha amiga, e eu a lembrar-me do documentário Inside Job... Pois, pois...
A arquitectura ferroviária da minha infância levanta-se da sua velha sepultura nas Pedras Salgadas e renasce na estação do Tua: nos edifícios bem conservados, na torneira gigante de água, nas pilhas de travessas da linha.
Leito apertado, margens rochosas, fiadas de cubas a lembrarem um instrumento musical cujo nome ignoro.
O verde de alguns vinhedos desmaia de vez em quando, como se fosse preciso prevenir a monotonia.
Outra vez os túneis — noite que acaba em cenários que parecem melhores talvez apenas porque a avidez da luz habita os nossos olhos.
Apetecia-me saborear com demoras contemplativas os sentidos destes poemas em xisto, verso a verso, socalco a socalco, estrofe a estrofe, encosta a encosta...
Mas para isso era preciso um comboio descendente muito mais ocioso.

sábado, 27 de abril de 2013

«Quem não viu Sevilha não viu maravilha»

O ditado é conhecido por muitos e imediatamente reconhecido pelos visitantes. No entanto, foi com o verso «Eran las cinco en punto de la tarde» de Federico García Lorca, no seu poema Pranto por la muerte de Ignacio Sánchez, o toureiro colhido na Real Maestranza, a praça de touros da cidade, que entrei na cidade.
A esta hora só há duas espécies de tontos nas ruas: os turistas e os taxistas. Os sevilhanos, em geral, dormem a sesta, necessariamente prolongada nesta terra de microclima sahariano. A ausência de ruído em avenidas tão rasgadas interroga-nos; as carroças dos cavalos que descansam em fila e sacodem as moscas com crinas nervosas lembram que a terra tem no turismo o seu maior capital. Et pour cause. Na verdade, são múltiplos os atractivos entre os quais se destaca o testemunho arquitectural do criativo diálogo entre as duas culturas dominantes ao longo da história: a mourisca e a cristã. A catedral — imponentemente católica — e a sua torre árabe, a Giralda, são mostras da convivência de moros y cristianos. Los Reales Alcázares e os seus jardins ostentam filiação magrebina no traçado, na presença de pátios com águas rumorejantes. Em todos os azulejos há a assinatura mourisca sobre fundo cristão ou vice-versa, consoante o olhar do observador.
Pelas seis da tarde, a cidade redesperta e embala num ritmo frenético, onde se agitam curiosos, quem trabalha, quem se diverte. O trânsito anima-se. Nos bares, estalam as sílabas veementes da língua espanhola. E o calor andaluz abrasa tudo.
Um passeio pelo bairro da judiaria mostra uma tendência hoteleira actual: recuperar e adaptar as velhas construções às necessidades e gosto estético actuais. Uma das unidades cota 17 mil metros quadrados com 11 casas, distribuídas por 5 ruas e 40 pátios. É um hotel-bairro, uma oferta turística a ser seguida por cidades com recursos históricos semelhantes, como Lisboa.
À hora de jantar, embora o ar seja ainda sufocante, a multidão apinha-se nas esplanadas, bailarinos e músicos ateiam nos peitos dos espectadores o fogo que arde na alma do flamenco, barcos de passeio sulcam o Guadalquivir, por onde outrora entraram nomes sonantes da navegação universal. Por entre a música, o rumor crescente dos automóveis, os sons desta Babel ardente, ouve-se o trote dos cavalos que passeiam turistas, levando-os aos pontos de interesse, com privilégio da arquitectura da Exposição Ibero-Americana de Sevilha, em 1928, as praças de Espanha e da América, o pavilhão de Portugal, agora transformado em consulado.
À frente da estátua dos três amores de Bécquer, no parque Maria Luísa, ocorre-me que tenho de ler este poeta, o mais reverenciado pela cidade, para verificar até que ponto é que conseguiu converter a alegria jubilosa que transborda pelas bermas deste lugar festivo nos cânones da melancolia romântica.
Cerca da meia-noite, saboreio as primeiras carícias de brisa, ocorre-me também o quanto devemos agradecer todo o momento que passamos em Paz, pois quem desfrutaria as maravilhas de Sevilha sob a ameaça da guerra?

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Azibo

Lá, vi ossadas de árvores semi-submersas, cornos vegetais que furam a água céu acima, a evocarem manadas de cervos em épica travessia subaquática. Vi enseadas a rasgarem a paisagem em ziguezagues inesperados, cães assustados a matarem a sede na albufeira e o seu murmúrio de matilha mansa evocou-me fugidios javalis. Vi pinheiros que fatiam o azul da água em códigos de barras, sobreiros de perfis halterofílicos, mergulhões a levantarem o seu voo pesado. Vi as luzes do crepúsculo roçarem sobre as águas mantos de cores cambiantes.
Não vi, mas ouvi falar dos lúcios que depois de devorarem todas as outras espécies piscícolas, se canibalizam, e os restantes, senhores únicos das águas, se tornam gigantes temíveis para os banhistas.
Saboreei deliciosas iguarias regionais: queijo apurado, doce de abóbora, presunto, peixes do rio.
Senti o perfume suave da vegetação rasteira florida, fui velada pelas silhuetas das árvores na colina contra a luz, únicas sentinelas do anoitecer.
Estas são surpresas de uma natureza sumptuosa, aqui tão perto. No Azibo.