terça-feira, 20 de agosto de 2013

No ar

(Paris–Hong Kong)

Lá fora a imensidão, uma medida tangível do tudo e do nada. A atravessá-la, o ronco perfurador das lâminas de aço da barca voadora. Para trás, ficam soluços de nuvens rasgadas, o rasto de vapor microespumejante, o rouco rugido das entranhas do monstro estratosférico.

Cá dentro, pelo corredor, de bandeja ou carrinho, «sumo ou água, chá, chá, café? Com licença, duty free, duty free»... Passam os pregões secos dos comissários de bordo. Arvoram uma polidez dura sem disfarçar um certo enfatuamento escuso, supremamente deslocado na hora do avental como uniforme.

Supremamente indiferente ao lá fora e ao cá dentro, resiste o sono de centenas de passageiros às rajadas de um baralho de cartas em jogos de paciências e ao choro arranhado de duas crianças. Nada disto ameaça o sossego do bojo desta baleia alada.

Fetalmente dobrados, pendendo a cabeça em ângulos ortopedicamente incorrectos, embrulhados em exíguos cobertores de bordo, eis os passageiros, senhoras e senhores, feitos figurantes involuntários de uma encenação de Mateusz Kantor ou desertores de uma tela de Magritte.

De quando em vez, arrítmicas irritações dos ares sacodem, em ondas turbulentas, o corpo gigante do pássaro de aço. E sempre inquietam sonos e insónias. Atavismos de naus balouçantes, e nós aqui sem chão! Mar que fosse...

Sem nada que o anuncie, o passageiro a meu lado desperta. Estica os membros numa extensão insuspeita, parecendo que o sono o tornou elástico. Agora é um pássaro estremunhado. Pousa, ajeita as asas, enrola-se e aninha-se no assento que, entretanto, reclinou, e eu olho o filme que passa. Palra a pega que repousa no ombro da personagem adormecida. Abutres de westerns, corvo de Poe, falcão de rainhas de bandas desenhadas, pássaros de Hitchcock, gaivotas na gávea, cuco de Março, pardais ao ninho, mochos piadores, o íbis de Pessoa, rouxinóis para meninas românticas, todos invadem o convés desta arca ornitológica pilotada por um Ícaro em festa.

Ah, Bartolomeu de Gusmão, irmão etéreo, se a tua passarola voasse no tempo e te transportasse ao coração do teu sonho...

E tudo isto no ar, elemento em que rola fácil a esfera da metamorfose.