quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A última road trip

Era para ser a última road trip. Por isso, queria que fosse típica, a arriscar o kitsch: malas, livros de poesia, cesta de piquenique, manta, equipamento para preparar refeições ligeiras, guarda-roupa temático, máquina fotográfica, mapa assinalado nas Bardenas, algum outro parque natural e cidades interessantes que ficassem no itinerário. Os CD’s tinham sido escolhidos entre as bandas sonoras dos filmes de Tarantino e afins. De resto, muita alegria, espírito do acaso, vontade de rebentar amarras de horários, canseiras, fracassos, rotinas.

Acontecimentos de última hora aconselhavam a não entrar na aventura, mas uma até então incógnita dose de optimismo impôs-se.

Las Bardenas Reales

A primeira cidade, mero posto de reabastecimento, nem sequer consta da rota. No dia seguinte, o hotel de estrada cheio de gente, ruído e aquela decoração que se torna impessoal à força de tanto querer ser personalizada, lixo da América vomitado sobre o coração da Ibéria. Mas os 15 km que o separavam do destino, as semi-desérticas Bardenas Reales, pesaram como argumento decisivo.

Vista pouco antes do pôr-do-sol, esta paisagem lunar surpreende por estar tão vazia de curiosos. Será porque é um cenário em que, ao longo dos 31 km de circuito para automóveis, as formas da desolação geológica se vão tornando personagens interrogadoras do nosso apetite pela desmesura? Não imaginava tanto desinteresse por esta exibição formidável de formações estranhas: gigantescas patas dinossáuricas do solo escorrencial, penhascos de recorte grandcanyonesco, listas vermelhas a marcar as camadas geológicas, a surpresa dos charcos ainda com água, ao lado da pele gretada do solo. O espanto imenso perante o grand large abre brechas por onde passa o hálito da angústia. E sobe o silêncio fora e dentro de nós.

Sem bicicletas nem a Vespa do plano inicial, outra volta de automóvel seria redundante. E assim ficam vistas as sonhadas Bardenas. ¡Hasta la vista!


Tudela

Toureiros em traje de luces no hotel levam à pergunta sobre o quando e o onde de la corrida. Em Tudela, durante as festas, há toiros todos os dias. À noite, jantar na cidade, num ambiente animadíssimo. Arriscaria dizer que os únicos que não andam vestidos de branco e vermelho são forasteiros. A faixa ou outro acessório vermelho sobre o geral branco lembra o sangue, os touros, o vinho tinto, o espírito garrido das gentes. Da Plaza Mayor sai um bruaaaá alto de mais para parecer um idioma, por muito habituados que os nossos ouvidos estejam ao falar martelado dos espanhóis — e por muito que o apreciem, como é o caso. Mas não era nada comparado com o do restaurante: rajadas de sílabas fortes em /a/, sequências de oclusivas muito intensas, formando uma algaraviada disparada para todo o lado, que nos impedia de nos ouvirmos à volta da mesma mesa, ainda que pequena.

Zaragoza

Incursão fugaz apenas para sentir a atmosfera da cidade à volta da magnífica Catedral-basílica de Nossa Senhora do Pilar e do Ebro. O calor, a utilíssima loja dos «chinos», que aqui lembram as dos árabes em França, o café na esplanada e o movimento de um domingo de manhã convidam a voltar sem pressa.


Cuenca

Para a frente é que é caminho e a direcção decide-se no momento. Depois de quilómetros de planície de campos de cereais louros recém-barbeados, o anúncio de um conforto aquático: «Laguna de Gallocanta». De placa em placa passaram mais de 20 km e o galo da laguna sem cantar. Um nativo informa que não se pode ir até à água de carro e, com seca ironia, que a pé só se a certa altura formos a nado… porque está rodeada por um pântano. Então fez-se o piquenique ali mesmo, numa via que dá acesso à laguna, perdão, ao paul, que não havíamos de ver. De repente, esta frase: «Já viste, quase de certeza que nunca mais voltamos a este lugar». Cresce a perturbação que perfura a consciência: «A este e a muitos outros».

Com Cuenca na mira passa-se por alguns desfiladeiros que, apesar de assustadores, não ferem uma dimensão mais humana da paisagem deste trajecto. A entrada é a de uma urbe espanhola moderna e, a certa altura, o movimento já tem ritmo de central e ainda não se vê nada digno de visita até à indicação das «casas colgadas». Lá estão elas inverosimilmente alcantiladas sobre as aflorações rochosas. Para onde haveriam de crescer as edificações entre o apertado abraço dos rios Júcar e o Huécar? E que lugar para a meditação! Não admira a quantidade de mosteiros. As formações líticas enfileiradas lembram colónias de cogumelos ou um bouquet juntinho. A praça central trai a hispanidade com os seus ares de Toscânia, reconhecíveis até por quem nunca esteve para além dos Alpes. Cada recanto é um vício fotográfico feito de paredes velhas mais ou menos restauradas e ruas estreitas. Apanhamos a catedral a tomar banho de sol poente. O jantar é servido por um empregado de mesa a quem agradeço a ternura desta frase, porque dita num tom tão carinhoso e tímido que só parece verdadeiro: «Me alegro mucho que le guste, señora.»



Toledo

Entro na cidade pela terceira vez e uma ideia flameja: ficar no Parador Nacional. Ao seguir as indicações, a ideia ganha razões: uma cidade bonita só se vê de outra margem do rio, e/ou de outra colina, como aprendemos com James Ivory, no filme Room with a view. Mesmo sabendo isto, não podíamos estar preparados para o postal que desfraldou ao abrir as portas da varanda nem que este panorama arrasador pudesse melhorar com os cambiantes de luz ao longo do dia.

A cidade é dominada pelo arrogante Alcázar Real . São várias as construções religiosas e castrenses esmagadoras que, juntamente com o dédalo da judiaria, os ângulos sobre as curvas do Tejo, as pontes oferecem mil e uma possibilidades a olhos inquietos.

Nem um cliente espanhol no Parador. Um sinal da crise? Orientais, russos, franceses — ceux-ci sont partout! — e estes dois portugueses.



Ávila

O nome da cidade na rota tornou obrigatória a paragem: por Santa Teresa e pelas grandes muralhas.

É a última morada antes do regresso. Balanços feitos, concluo que vale a pena ir, sem pré-visitas da Wikipédia, do American Express nem visitas guiadas locais, mas ir, ir. Sabe-se menos, é certo. Se se sente mais por se chegar de olhos nus ansiosos, não tenho certezas.

Os silêncios favorecidos pela grandeza das paisagens, o atar de pontas de conversas e de velhas histórias comuns em registo de monólogo, o vinho bom a favorecer a conversa, a comida recomendável, com excepção dos monotemáticos pequenos-almoços, em que pontua o mau pão, seco, palhuço, desalmado, o rigor indumentário que nunca abandonei, fazem-me acreditar que esta viagem aconteceu mesmo. Penso nas palavras da grande mística de Ávila: «basta uma graça dessas para transformar uma alma por inteiro». As paisagens interiores reveladas pelas fotografias bastam para mudar a vida.

Foi a road trip possível. Será a última?