segunda-feira, 29 de abril de 2013

No comboio ascendente

Um vagão reciclado em esplanada de restaurante.
Uma fila de freixos brancos faz sentinela à porta leste da cidade.
Um cavalo na margem do Corgo sacode a crina, soltando notas de graça e distinção.
Lixo, lixo e mais lixo — a praga infestante das bermas portuguesas.
Um bairro de barracas de ciganos — todos sabem onde estão, como vivem, mas ninguém lá vai. Pudera! É um estado — um estábulo — à parte.
E já o rio corre à distância de um salto das janelas do comboio. Será por isso que seguem fechadas?
Há um catálogo de penteados na paisagem que passa: frisado na superfície do rio, entrançado afro nas vinhas ao alto, crespo natural nas terras incultas, solto nos ramos ao vento das sálix babilónicas.
Súbitas casas apalaçadas, quase castelos, mas também algumas ruínas de antigas prosperidades.
A graça de um topónimo diminutivo: Covelinhas.
Proibido circular a pé — cartaz onde revejo as caminhadas proibidas na linha do Corgo, no tempo em que nela circulavam comboios.
A folhagem dos ulmeiros, nervosos cata-ventos.
Opuntias, acácias, figueiras, funchos, plátanos, eucaliptos, laranjeiras definem a flora arbórea.
Barcos a subir e a descer e a deixar aquele rasto que é sempre mais bonito quando se vê do que quando se recorda.
Reverbera uma profusão de espelhos: lisos nas escarpas cortadas verticalmente no xisto e na superfície imóvel do rio, partidos nas diminutas ondas-obra-do-vento.
Montes inteiros em estado selvagem — «imaginem isto tudo cultivado!» — Desentendimentos de herdeiros? Perigosas imprecisões dos limites? Preços incomportáveis do arroteamento?
As suaves curvas do rio, as vinhas ao alto — leques da paisagem. Fileiras de árvores cortadas na margem — até aqui a obstinação arboricida persiste!
Hortas perto das estações, praias de laranjais, de vinhas, e de vez em quando uma ave de rapina patrulha o rio.
A Quinta dos Aciprestes com bom vinho, bardos ao alto e perfis toscanos nas árvores fúnebres.
«Aqui toda a gente podia ser de classe média ou alta, mesmo os trabalhadores», diz a minha amiga, e eu a lembrar-me do documentário Inside Job... Pois, pois...
A arquitectura ferroviária da minha infância levanta-se da sua velha sepultura nas Pedras Salgadas e renasce na estação do Tua: nos edifícios bem conservados, na torneira gigante de água, nas pilhas de travessas da linha.
Leito apertado, margens rochosas, fiadas de cubas a lembrarem um instrumento musical cujo nome ignoro.
O verde de alguns vinhedos desmaia de vez em quando, como se fosse preciso prevenir a monotonia.
Outra vez os túneis — noite que acaba em cenários que parecem melhores talvez apenas porque a avidez da luz habita os nossos olhos.
Apetecia-me saborear com demoras contemplativas os sentidos destes poemas em xisto, verso a verso, socalco a socalco, estrofe a estrofe, encosta a encosta...
Mas para isso era preciso um comboio descendente muito mais ocioso.